Moradores do Distrito de São Pedro relembram dos dias de filmagem e preparação para o filme. Lucy Barreto, produtora executiva do longa, destaca o legado da obra que retrata a imigração italiana no Rio Grande do Sul
Por Cassiano Battisti
Há 30 anos, um filme mudou a vida de uma comunidade e levou o cinema brasileiro novamente aos olhos da Academia de Hollywood, o Oscar. “O Quatrilho”, dirigido por Fábio Barreto e lançado em 1995, não foi apenas um marco artístico, mas também, segundo moradores do Distrito de São Pedro, um divisor de águas para o turismo.
Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1996, o longa-metragem foi rodado em diversas cidades da Serra Gaúcha, como Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Antônio Prado, Farroupilha e Carlos Barbosa. Com elenco de peso, Glória Pires (Pierina), Patrícia Pillar (Teresa), Bruno Campos (Mássimo) e Alexandre Paternostro (Ângelo), a obra é baseada no romance de José Clemente Pozenato, e retrata o cotidiano dos imigrantes italianos no Brasil do início do século XX, em especial os dilemas de duas famílias que desafiam as convenções da época ao trocar de cônjuges.

O livro, publicado em 1985, foi baseado em fatos ocorridos em uma localidade chamada Tapera, em Gramado. A história real envolve os nomes de Giuseppe e Maria (que inspiraram Mássimo e Pierina), e Carolina e Nicodemo (que inspiraram Teresa e Ângelo). Troca de casais teria acontecido em 1907.
A casa que virou cenário e símbolo de identidade
Entre os locais de gravação, um em especial ganhou destaque e reconhecimento nacional: a Cantina Strapazzon, em Bento Gonçalves. A casa centenária de pedra irregular construída em 1880 pelos antepassados de Vilso Strapazzon se tornou cenário de algumas das principais cenas do filme em janeiro de 1995, como o almoço em que se insinua o romance que dá origem à troca de casais. “Achávamos que nossa casa era sinal de pobreza, que ninguém sairia de sua cidade para visitar uma casa velha. Mas, com o tempo, entendemos: ela não era velha, era histórica”, conta emocionado Vilso Strapazzon, atual guardião do local, que preserva até hoje o chão batido e as madeiras originais.
Confira um trecho da entrevista no Instagram do Semanário:
https://www.instagram.com/reel/DMQID3GsQCY/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==
Durante os dez dias de filmagem na propriedade, sendo oito de preparação e dois de gravações, mais de 80 profissionais trabalharam no local, transformando a antiga cantina vinícola em residência. “Foi impressionante ver o cuidado da equipe com os mínimos detalhes: cobrir o calçamento moderno com terra para manter a autenticidade de 1910, evitar sons contemporâneos, preparar o ambiente com móveis antigos. A gente só percebe o tamanho da produção muito tempo depois”, relembra Vilso.






O impacto no turismo
“O Quatrilho” não apenas projetou a Serra no cenário cinematográfico internacional, mas foi também a alavanca definitiva para o turismo na região, que engatinhava desde 1992 com o início do roteiro Caminhos de Pedra. Segundo Strapazzon, após o lançamento do filme, as visitas cresceram exponencialmente e levaram à reestruturação das propriedades: criação de estacionamentos, banheiros para turistas e organização de excursões. O longa foi lançado oficialmente em todo o Brasil em 20 de outubro de 1995.

Bastidores
O filme também foi marcado pela presença de atores regionais. Um deles foi Arcangelo Zorzi Neto (mais conhecido como Maneco), de Caxias do Sul, que interpretou o personagem Schopa. Integrante do grupo de teatro Miseri Coloni, Zorzi já encenava a obra em formato teatral quando foi chamado por Fábio Barreto para o elenco do longa. “O diretor do filme quis assistir duas vezes o espetáculo e depois quando fui chamado para o longa, muitas cenas lembravam o que a gente fazia no palco. Eu participei de quase toda a filmagem. Foi um processo desafiador, mas muito recompensador”, lembra.
Sua atuação no Quatrilho abriu portas para outros projetos. Zorzi também estrelou o curta “Ego Sum!”, premiado internacionalmente, inclusive recebendo o título de melhor ator em Los Angeles. “Estava na minha segunda experiência em filmes, mas conhecia muito bem todo o contexto da obra. Quando nos ensaios o diretor viu como tinha elaborado meu personagem, achou excelente. Nós descendentes de imigrantes italianos continuamos com muito humor como do personagem Schopa, e até hoje as pessoas me reconhecem pelo papel”, conta.

Ele reforça que a convivência com os outros atores, muitos já consagrados na época, foi sempre muito boa. “Mesmo sendo globais sempre tivemos uma excelente e legal convivência”, menciona.
Veja mais fotos dos bastidores:




“Nunca se imagina que vai ao Oscar” – lembra Castiel
Outro nome importante na produção foi o ator José Victor Castiel, que interpretou Miro, o dono da venda. “Naquela época, ser indicado ao Oscar era quase impensável para o Brasil. Mas o filme provou que era possível, com talento, sensibilidade e verdade”, relata.
Castiel, que à época dividia sua carreira entre Porto Alegre e o Rio de Janeiro, atuou ao lado dos protagonistas e destaca o profissionalismo e simplicidade do elenco. “A Patrícia Pillar e a Glória Pires já eram estrelas, mas o ambiente era muito acolhedor. Não houve estrelismo. Era um projeto feito com paixão”, destaca.

Sobre o impacto na própria carreira, ele é direto: “O Quatrilho qualifica o currículo de qualquer ator. Participar de um filme indicado ao Oscar te insere na história do cinema brasileiro. E isso ninguém tira”, pontua, com orgulho.

Veja a entrevista completa com o ator no YouTube do Semanário:
Um marco que resiste no tempo
Três décadas depois, “O Quatrilho” segue sendo lembrado. Foi o primeiro filme brasileiro em mais de 30 anos a concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, após “O Pagador de Promessas” (1962), abrindo caminho para novas produções.
Se há um traço que diferencia “O Quatrilho” de outras grandes produções do cinema nacional é o envolvimento direto e entusiasmado da comunidade com o projeto. Para Lucy Barreto, produtora executiva do longa, a experiência de filmar na Serra Gaúcha foi incomparável. “Eu já produzi mais de 150 obras entre longas, curtas, séries e documentários. Mas nenhuma teve tamanha colaboração local como ‘O Quatrilho’”, afirma Lucy. Ela lembra que tudo começou com um apelo de Nestor Perini, então presidente da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Caxias do Sul. “Ele mobilizou sindicatos, comerciantes, restaurantes. Todos entenderam que o filme falava da sua própria história. E eles ajudaram como podiam”, salienta.

Foi assim que chegaram tecidos, madeiras, objetos antigos, colchas, móveis para a cenografia e até refeições com preços simbólicos para toda a equipe do filme. As dificuldades foram suavizadas pela hospitalidade e pelo sentimento de pertencimento. “As pessoas nos perguntavam o tempo todo se precisávamos de algo, traziam muitos itens de época para compor o filme. Queriam ver aquele passado retratado com verdade. E conseguimos”, pontua.
Como afirma a produtora, além do cuidado com os figurinos e interiores das casas, trabalhou-se muito no sotaque regional, a língua Talian e costumes típicos.

Esse zelo artístico teve como reflexo uma narrativa que se tornou ferramenta de preservação da memória. “O legado do filme é justamente esse: ele é um retrato fiel de uma época e de uma cultura. E isso tem um valor imenso, não só cinematográfico, mas histórico”, avalia.
Rodado em oito semanas, “O Quatrilho” é, para Lucy, o exemplo máximo do que o cinema pode realizar quando há engajamento comunitário. “Foi uma das produções mais recompensadoras da minha vida”, destaca.

Ela guarda com carinho a memória de uma região que abriu suas portas e abraçou o cinema. “É um filme precioso para a imigração italiana no Rio Grande do Sul. Deixamos um trabalho muito bem feito e digo mais, não foi justo perder o Oscar para a película holandesa ‘A Excêntrica Família de Antônia’”, finaliza.
Produtora executiva do filme “O Quatrilho” concede entrevista exclusiva

Jornal Semanário- Passados quase 30 anos desde o lançamento de O Quatrilho, quais são as primeiras memórias que lhe vêm à mente quando pensa no processo de produção desse filme?
Foi um momento da minha vida de produtora muito compensador, porque eu tive a colaboração da população da região, porque a história de ‘O Quatrilho’ era a história do local das gravações. Eu posso dizer que eu tive a colaboração plena da população. Eu acredito que, sem essa colaboração, o filme não poderia ter sido feito, porque é um filme de época. Dessa forma, eu precisava contar não só com o vestuário, como com toda a cenografia e detalhes da composição dos interiores. Eu precisava de roupa de cama da época, que era diferente, usava-se muito bordado, muita renda, e usava-se também muitos paninhos de adorno em cima dos móveis e muitos outros objetos.
Uma das perguntas que a imprensa fazia sempre era a questão do orçamento. Eles eram muito curiosos a respeito disso, porque eles diziam que o filme tinha uma fatura: os figurinos, os interiores, as viagens, os transportes, o uso de animais. Eles perguntaram ao Fábio Barreto, meu filho, diretor do filme, qual era o orçamento do filme. E o Fábio, muito espertamente, dizia assim, ‘quanto é que vocês pensam que esse filme deve ter custado?’. Não dava a resposta imediatamente. Eles diziam: ‘por volta de uns 40 milhões de dólares, entre 40 e 50’. Eu, que estava presente disse ‘não, ele custou um milhão e meio de dólares’. Bom, foi aquela surpresa. Evidentemente, eu disse que tive a colaboração da população. Eles ficaram muito surpresos com tudo isso.
Claro que também o Fábio era uma pessoa muito generosa, muito companheira. Ele sabia cativar as pessoas, com a sua índole, ele se dava muito bem com todos. Muita coisa que se conseguiu foi graças também ao Fábio Barreto e ao seu comportamento.
Jornal Semanário – Como era a relação com os atores?
Glória Pires, Patrícia Pillar, Alexandre Paternost e Bruno Campos foram atores que colaboraram muito em todo momento, e isso facilitou bastante. Nós tivemos a participação também de muitos atores da região, porque o filme tinha um grande plano de atores. Nós tínhamos inúmeros atores secundários, sendo utilizados atores gaúchos. Nós só levamos os quatro principais, todos os outros personagens foram colhidos no Rio Grande do Sul. E o filme também tinha muitas cenas de multidão, então, nós usamos também pessoas daí. Tivemos a música do Caetano Veloso, junto com o Jaques Morelenbaum, uma música muito bonita. Evidentemente, nós tínhamos a nossa trilha sonora, mas colocamos canções da época como ‘Mérica Mérica’.
Jornal Semanário – O longa foi gravado na Serra Gaúcha, especialmente em Bento Gonçalves e Caxias do Sul. O que a motivou a escolher essa região como cenário principal para a narrativa?
Isso foi evidente, porque o filme era sobre colonos que cultivavam a uva e essa região do Rio Grande do Sul é uma região de cultivo da uva e vinho.
O filme se passava todo na Serra Gaúcha, é a história dos imigrantes de origem italiana. Houve da parte do Fábio um cuidado muito grande que a gente obedecesse o máximo possível todos os componentes, inclusive o dialeto da época.
Jornal Semanário – O livro, no qual se baseia o filme, tem como referência uma história real. Como foi essa pesquisa para fazer o filme?
Nós procuramos ficar o mais próximo possível do livro do Pozenato, porque a história descrita por ele é muito boa, tanto dramaticamente como dramaturgicamente. Nós nos preocupamos apenas em cortar algumas sequências que não significassem muito, mas não acrescentamos nada. Nós nos baseamos mesmo na adaptação do livro.
Jornal Semanário- Você tem alguma lembrança marcante dos bastidores com atores, durante as gravações em Bento ou outro lugar daqui da Serra?
As gravações em Bento Gonçalves foram muito especiais, porque nós tivemos que colocar terra na rua (Cantina Strapazzon), porque na ocasião era de paralelepípedos. O Fábio, muito exigente com tudo, disse que nós tínhamos que pôr terra, porque na época retratada no filme não era dessa maneira. Foi bem na cena da chegada do casal da Patrícia Pillar (Teresa), que vinha visitar a Glória Pires (Pierina).
Jornal Semanário – E como foi a divulgação do filme, principalmente visando o Oscar na época?
Naquela ocasião, os filmes eram indicados pelo Ministério da Cultura. Não tínhamos nenhuma expectativa, foi uma surpresa para nós quando soubemos que fomos escolhidos para representar o Brasil.
Um momento muito gratificante foi o lançamento do longa no mercado, porque o filme agradou muito, foi um filme de grande público. Para nós produtores, Luiz Carlos e eu, o mais importante é fazer sucesso na bilheteria. É o que a gente quer, é o cinema brasileiro vivo. E Luiz Carlos, na ocasião, fez todo um planejamento de lançamento. Ele se ocupava muito da distribuição, de como lançar, porque o Brasil é muito grande. Lançamos primeiro no Rio Grande do Sul e de lá nós partimos para todo o Brasil. Isso nos deu uma grande satisfação e foi quase que simultâneo ao Oscar. Então, quer dizer, foi o sucesso do lançamento com a escolha para o Oscar logo em seguida. É bem verdade que, em 1990, quando foi extinta a Empresa Brasileira de Filmes S.A (Embrafilme) pelo ex-presidente, Fernando Collor de Mello, nós fomos para Los Angeles (EUA). Eu estava com uma série de projetos e nós tínhamos a nossa empresa, a LC Barreto, que já estava internacionalizada desde a comercialização de ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’. Em 1978, nós criamos uma empresa nos Estados Unidos, a Carnaval Films (hoje Flora Films). Desde então, nós sempre tivemos uma distribuidora de filmes lá, por isso nós tínhamos um pé nos Estados Unidos. Com isso, eu levei projetos naquela ocasião, porque você não tinha nenhuma perspectiva de produzir nada aqui no país. Entre os projetos que eu levei para lá, estava ‘O Quatrilho’. Eles se entusiasmaram pelo projeto, queriam filmar lá, porque os Estados Unidos também tem toda uma colonização italiana. Houve essa possibilidade de ser feita nos Estados Unidos e eu recusei.
Jornal Semanário – Quais são os planos futuros?
Estamos terminando o filme do Cacá Diegues, ‘Deus Ainda É Brasileiro’. Nós temos ‘Traição Entre Amigas’, do Bruno Barreto, tirado de um livro da Thalita Rebouças, e temos mais projetos com a China, sendo um deles a animação ‘Amazônika, a Origem’, entre outros projetos.
Jornal Semanário – Se você pudesse revisitar Bento Gonçalves hoje como produtora, o que gostaria de ver?
Gostaria de visitar um vinhedo, uma vinícola, já que Bento é conhecida por isso.
Veja a entrevista completa com a produtora executiva no YouTube do Semanário:
O filme completo está disponível de graça no YouTube:
Sinopse: Rio Grande do Sul, 1910. Em uma comunidade rural composta por imigrantes italianos, dois casais muito amigos se unem para poder sobreviver e decidem morar na mesma casa. Mas o tempo faz com que a esposa (Patrícia Pillar) de um (Alexandre Paternost) se interesse pelo marido (Bruno Campos) da outra (Glória Pires), sendo correspondida. Após algum tempo, os dois amantes decidem fugir e recomeçar outra vida, deixando para trás seus parceiros, que viverão uma experiência dramática e constrangedora, mas nem por isto desprovida de romance.
Veja mais algumas fotos dos bastidores em Antônio Prado:


















