Estava cobrindo minha máquina do tempo para uma pausa necessária à recarga das baterias, quando, assim do nada, o cara surgiu. Devo ter mexido em algum dispositivo ultrassensível que me arremessou para o passado distante, há mais de quinhentos anos…  Pela cúpula da catedral Santa Maria Del Fiore, vi que pousara em Florença.

O jovem era de uma beleza inigualável. As melenas loiras caíam ao longo do peito e o azul do olhar lembrava um campo de lavanda.  O nariz aquilino revelava um espírito arguto, e os gestos mostravam determinação.  

-Estou sonhando? – balbuciei incrédula.

-Tudo que está no plano da realidade já foi sonho um dia – falou ele, sorrindo.

-Você é…?

-Da Vinci! Mas pode me chamar de Leonardo. E nada de “Leo” para os íntimos… – ironizou.

Então eu estava diante do gênio mais polivalente de todos os tempos, do artista que transitava em todas as esferas do conhecimento e, de quebra, um piadista! É de se supor que eu faria uma pergunta minimamente inteligente, mas foi a mais idiota possível…

-Você é… casado?

-O casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de apanhar uma enguia.

Obviamente, não. Então lhe perguntei como ele se definia…

-Pintor, escultor, físico, matemático, anatomista, cientista, inventor, arquiteto, engenheiro militar, filho ilegítimo, gay, vegetariano – por respeito aos animais –,  canhoto, curioso, muito disperso e, às vezes, herético… Ah! E autodidata.

-Você falou “filho ilegítimo”. Isso o marcou? – perguntei.

-Positivamente. Fiquei livre para fazer o que quisesse e buscar minha própria identidade.

-Mas “herético”?! Um herege pintando a Última Ceia, a Anunciação… – retruquei.

A tréplica me deixou meio baratinada. Tinha a ver com a conexão das coisas com tudo, nem sempre visível para todos. Saí à francesa, com uma questão atual:

-O que você diria a cerca do homem do século XXI, se pudesse?

-Diria que muitos continuam sendo meros produtores de esterco.  

Uaaau! Não é que o cara foi o precursor da frase mais repetida em nossos dias “ele só faz m…”. Então contra-ataquei com uma pergunta extremamente banal:

-Sua fala é sempre tão serena?

A resposta, no entanto, foi genial:

-Quem sabe realmente do que fala, não encontra razões para levantar a voz.  

Era bom demais ouvi-lo, mas precisava voltar. Girei a chave de ignição e pisei de levinho no acelerador… Em slow motion, acompanhei a transformação de Da Vinci na figura de grande barba branca, do jeito que foi imortalizado nos livros de História.