Embora recolher pedacinhos da vida e montar o quebra-cabeça pessoal seja coisa de psicoterapeuta – até porque sempre há conexões entre o consciente e o inconsciente que o paciente não percebe –, me peguei fazendo autoanálise. Tipo ligar os pontos, assim como meu netinho faz no tema de casa, aliás, com muita propriedade e independência. E neste processo, descobri uma pecinha miúda e antiga nos confins de minhas raízes, quase tendo virado matéria orgânica. Mas nada que um processo de recuperação não salvasse sua história… Só estou em dúvida se já não relatei… Mas, se o fiz, certamente não foi com um olhar distanciado…

A imagem que me vem à cabeça é de um dia amarelo e estático. Se não fosse pela fumaça vomitada pela chaminé do alambique ganhando altura até se dissolver no azul do céu, diria tratar-se de uma paisagem pintada sem perspectiva e sem profundidade.

A casa de minha amiga parecia a melhor opção para fugir da monotonia e do silêncio. Uma das brincadeiras repetidas à exaustão era rolar de cabeça para baixo pela escada que partia da varanda e acabava no chão cimentado. Ou então cantar o Hino Nacional a 100 decibéis, como sopranos completamente desafinadas.

Não naquela tarde. Talvez tenhamos divergido, porque, de repente, a guria surgiu com a espingarda do pai apontada para mim. E eu sabia que estava carregada, pois todos da região tinham esse hábito para ganhar tempo no caso de aparecer algum ladrão de pintinhos. Geralmente, gaviões, tão preservados hoje, mas tão perseguidos na época.
Nenhum adulto por perto, só nós duas, a caça e a caçadora. Esta com a vantagem de estar em seu habitat, conhecendo todos os cantos e cafuas que poderiam me servir de esconderijo ante sua perseguição implacável. Até que…

É aí que reside a dúvida. Me pergunto se o que aconteceu depois de tanto esconde-esconde foi algo irrelevante que minha memória nem registrou, ou se foi um evento traumático que minha memória apagou para me poupar…
Enfim, de projétil, não carrego nenhuma cicatriz. E já não fico desassossegada nos dias amarelos que se arrastam sob um céu exageradamente azul. Só aquela sensação de “hora morta” ainda me incomoda, porque o silêncio absoluto, para mim, é ensurdecedor.

Parece que o cérebro tem mecanismos de geração de alucinações auditivas quando se encontra em silêncio. Ou será que preciso abrir a caixa preta e ligar mais um ponto?