Kelen Rubbo morou por seis anos nas ruas de Bento Gonçalves, devido a dependência química. Entretanto, conseguiu vencer o vício e mudar os rumos da própria vida. O marido, Uilliam, enfrentou uma trajetória parecida e também está curado. Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo alerta sobre os perigos de quem faz uso em excesso do álcool

“Meu nome é Kelen Rubbo, conheci o álcool aos 18 anos e cheguei ao fundo do poço”. Foi dessa forma que ela começou o relato da sua trajetória de vida, que por quase vinte anos, foi em função da dependência química, a mesma que a fez perder oportunidades de trabalho, a casa e até mesmo as duas filhas.

Na sexta-feira, 18 de fevereiro, celebra-se o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo, data destinada a conscientizar sobre os danos que o consumo excessivo de bebida alcoólica pode causar. Por isso, a reportagem do Jornal Semanário trouxe o depoimento de quem venceu essa dura batalha e conseguiu mudar os rumos do próprio destino.

Devido ao vício, por aproximadamente longos seis anos, a casa de Kelen não tinha cama, banheiro, nem cozinha, afinal, eram ruas de Bento Gonçalves que ela vivia. Durante esse período, enfrentou chuva, frio e até mesmo violência. Ela afirma o que ninguém tem dúvidas: “foi sofrido”.

Nessa época fez amizade com Uilliam, que futuramente se tornou marido. Ambos enfrentavam o mesmo problema. “Conheci meu esposo na vida ativa do álcool e vício, mas éramos somente amigos e nem pensávamos em ficar juntos. Ele também já estava no fundo do poço e passou a morar nas ruas por causa do alcoolismo”, relata.

O casal Kelen e Uilliam conseguiram curar o vício e mudaram de vida

Para Kelen, a consequência mais dolorosa dessa jornada foi a perda das filhas. Uma delas, a mais velha, hoje com 18 anos, foi adotada por uma família que reside em Carlos Barbosa. A mais jovem, atualmente com 13 anos, até hoje está sob os cuidados de uma tia. “Mantenho contato com a mais nova, está bem cuidada, uma excelente filha”, conta.

Duas vidas transformadas

Para um dependente químico, largar o vício não é uma missão fácil e nem rápida. Entretanto, com ajuda especializada e força de vontade, torna-se possível. Kelen, por exemplo, passou por diversas internações e tratamentos ao longo dos anos. Muitas dessas tentativas foram frustradas, como ela mesma define. “Ficava três meses em cada tratamento, mas não conseguia vencer. Quando achava que minha família ia ficar contente, tinha outra recaída”, diz.

Entretanto, essa transformação aconteceu. Kelen ficou nove meses internada em uma Comunidade Terapêutica e venceu a luta. Uilliam, enfrentou um período mais longo de tratamento: 1 ano e quatro meses. “Um dia, Deus entrou na causa e me deu forças. Nesse período, meu marido também se tratava, em outro local”, afirma.

Hoje, o casal orgulha-se da superação. Ambos estão há seis anos limpos, longe de qualquer bebida alcoólica. “Ao término de nove meses de internação, voltei para minha casa e ele também. Nos reencontramos. Já estava em comunhão com a Igreja e o Uilliam se batizou em outra congregação. Estamos casados há quatro anos, servimos a Deus juntos, com toda nossa gratidão e somos felizes”, comemora.

O casal, agora aos 43 anos, tem uma nova vida, totalmente diferente daquela que para eles só tem um lugar: o passado. “Quem nos vê, não acredita na nossa superação. Foi uma grande mudança, não só de largar o vício, mas de caráter, como ser humano, como pessoa. Foi algo de Deus”, garante.

Com a batalha vencida, Kelen tirou muitas lições, por isso, deixa um alerta sobre a realidade que conheceu de perto. “A gente conhece muitos (dependentes químicos) que superaram, mas muitos que perderam a vida nas ruas, pelo vício no álcool e drogas. Para entrar nessa vida é um pulo e para sair é uma luta. Aconselho minhas filhas e oro pela juventude de hoje para desligar do mal desse mundo”, conclui.

Um espaço gratuito para tratamento

Quem precisa de ajuda especializada, muitas vezes não sabe a quem recorrer. A boa notícia é que Bento Gonçalves conta com o Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e outras Drogas (CAPS AD), que oferta gratuitamente, atendimento diário à população que sofre com transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas.

O espaço pode ser acessado por livre demanda. Portanto, não é obrigatório ter algum tipo de encaminhamento. “Nosso serviço atende de ‘portas abertas’, ou seja, não é necessário agendar horário. Sempre tem algum profissional da equipe à disposição para acolher quem nos procura”, explica a assistente social e Coordenadora do CAPS AD, Cristiane Rohrig Ferronato.

Em 2020 o local realizou 11.775 atendimentos. Em 2021 houve uma pequena redução, de 5%, pois foram 11.125 atendimentos. Esse ano, até o dia 31 de janeiro, o espaço já prestou 1.250 atendimentos. A procura por tratamento ainda é maior por parte do sexo masculino. “Apenas 16,68% dos pacientes é do sexo feminino”, afirma.

Por lá, são ofertados consultas médicas, psicoterapia, atendimento de enfermagem, serviço social e acolhimentos. Além disso, tem a opção dos atendimentos grupais.  “De sócio educação, motivação, família, Terapia Ocupacional, de redução de danos e oficinas de artesanato”, conta.

Como nem sempre a própria pessoa reconhece que está abusando do uso de álcool ou outras substâncias, muitas vezes é a família quem chega primeiro ao serviço, em busca de orientações e auxílio. O CAPS AD atende pacientes dos 11 aos 82 anos.

Comunidade Terapêutica

Para os pacientes que precisam de cuidado mais intenso, existe a Comunidade Terapêutica, que oportuniza um período de afastamento maior do convívio social, tendo o tratamento focado em três eixos: espiritualidade, trabalho e disciplina.

De acordo com Cristiane, durante a internação, que pode durar entre seis a nove meses, o usuário participa de atividades grupais e individuais, tendo a oportunidade de rever seu projeto de vida. “Para muitos é a oportunidade de recomeço”, garante.

As vagas da Comunidade Terapêutica são reguladas pelo CAPS AD. A inserção do usuário no local ocorre após uma avaliação e construção de um chamado Plano Terapêutico Singular. “Passando o sujeito por período de atendimento no intensivo, ou desintoxicação breve na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), ou desintoxicação no Hospital Tacchini”, esclarece.

Em 2020 foram encaminhadas 83 pessoas para a Comunidade Terapêutica. Em 2021 houve um pequeno aumento: 97 usuários. Esse ano, até o momento, 14 pessoas estão usando o serviço.

Cristiane salienta a importância do Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. “É importante para chamar a atenção para a reflexão sobre a problemática do uso abusivo das substâncias e dos males que acarretam a vida dos sujeitos e das suas famílias, bem como, reforçar a possibilidade da oferta de atendimento àqueles que precisam de orientação e tratamento”, defende.

Por fim, a profissional destaca que os atendimentos oferecidos tanto pelo CAPS AD, quanto pela Comunidade Terapêutica, não têm custo para os usuários e/ou familiares. “São serviços da Rede de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS) do Município de Bento Gonçalves”, finaliza.

O CAPS AD está localizado na rua 15 de Novembro, número 132, no bairro Planalto. Os atendimentos funcionam de segunda à sexta-feira, das 7h30min às 11h30 min e das 13h30min até às 17h30min. Também é possível fazer contato por telefone / WhatsApp: (54) 3055-8506.

Sob o olhar da medicina

De acordo com a psiquiatra e psicoterapeuta cognitivo comportamental, Verônica Lazzari, o transtorno de dependência alcoólica é uma doença causada pela interação de diversos fatores: genéticos, ambientais e psicossociais. “Isso quer dizer que temos uma transmissão genética – especialmente em homens -, o local onde a pessoa está e o meio em que convive, a facilidade do acesso à bebida, achar que beber em qualquer lugar ou qualquer motivo é normal”, explica.

Quem bebe em excesso, pode sofrer prejuízos físicos e psíquicos. A curto prazo, segundo Verônica, está o surgimento de sonolência, descontrole de impulsos, agressividade, lapsos de memória, episódios depressivos ou ansiosos, além da famosa ressaca (dor de cabeça, sede, mal estar, vômitos).

A longo prazo os danos são considerados mais graves que os citados acima. “Como demência alcóolica, psicose, hepatite, cirrose, esteatose hepática, pancreatite crônica, polineuropatia (a ponto de poder deixar a pessoa numa cadeira de rodas), gastrite, pancreatite, câncer, em especial de boca, esôfago, gástrico, intestinal e hepático, problemas cardíacos como cardiomiopatia alcóolica, hipertensão, dentre outros”, aponta.

O que muitas pessoas se perguntam é sobre o momento em que se deve procurar ajuda especializada. “Quando qualquer quantidade de ingestão alcóolica passa a trazer prejuízos em qualquer âmbito da vida da pessoa (brigas, problemas no trânsito, dificuldades nos relacionamentos), mesmo sendo um uso esporádico, deve-se procurar ajuda”, garante.

Outro alerta da profissional é que o álcool, muitas vezes é usado para “anestesiar” sentimentos, como frustração, tristeza e ansiedade. “Mascarando, assim, a necessidade de tratar aquilo que pode ser a doença base, que com o uso da bebida pode se transformar em duas doenças: a depressão e a dependência, por exemplo”, explica.

Quando o habito de beber é considerado um transtorno?

Conheça sete sinais, indicados pela a psiquiatra e psicoterapeuta cognitivo comportamental, Verônica Lazzari:

  1. A pessoa passa a beber com mais frequência, até consumir todos os dias, em quantidades crescentes, deixando de importar-se com a inadequação das situações.
  2.  Há uma tentativa do indivíduo de priorizar o ato de beber, mesmo em situações inaceitáveis (por exemplo, dirigindo veículos, no trabalho). O beber passa a ser a principal na vida do usuário, acima de qualquer outro valor, como saúde, família e trabalho.
  3. Necessidade de doses crescentes de álcool, para obter o mesmo efeito que tinha antes com doses menores
  4. Sintomas repetidos de abstinência: quando há diminuição ou interrupção do consumo de álcool sintomas de intensidade variável. No início são leves, pouco incapacitantes, mas nas fases mais severas da dependência podem manifestar-se os sintomas mais significativos, como tremores náuseas, vômitos, sudorese, cefaleia, cãibras, tontura, irritabilidade, ansiedade, fraqueza, inquietação, depressão, pesadelos, ilusões, alucinações (visuais, auditivas ou tácteis).
  5. Alívio ou evitação dos sintomas de abstinência pelo aumento da ingestão da bebida com o paciente admitindo que bebe pela manhã para sentir-se melhor.
  6. Necessidade de beber para aliviar os sintomas da abstinência.
  7. Mesmo depois de períodos longos de abstinência, se o paciente tiver uma recaída, rapidamente restabelecerá o padrão antigo de dependência.