“Saneamento Básico – O Filme” foi gravado em 2006, movimentando a comunidade de três cidades da Serra Gaúcha durante as gravações
A indicação de Fernanda Torres ao Oscar de Melhor Atriz trouxe à tona memórias de sua passagem pela Serra Gaúcha durante as filmagens de “Saneamento Básico – O Filme” (2007), dirigido por Jorge Furtado. O longa, gravado em Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul e Santa Tereza, marcou não apenas a trajetória da atriz, mas também a história local, mobilizando a comunidade e deixando recordações curiosas na imprensa e entre os figurantes das três cidades que participaram.
Fernanda Torres disputa o Oscar de Melhor Atriz pelo papel de Eunice Paiva em “Ainda Estou Aqui”, adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva. O filme conta a história do início da década de 1970, onde o Brasil enfrenta o endurecimento da ditadura militar. No Rio de Janeiro, a família Paiva – Rubens, Eunice e seus cinco filhos – vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva, esposa de Eunice (interpretado por Selton Mello), é levado por militares e desaparece. Eunice – cuja busca pela verdade sobre o destino de seu marido se estenderia por décadas – é obrigada a se reinventar e traçar um novo futuro para si e seus filhos. O longa concorre ao Oscar de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional.
Por sua vez, Fernanda concorre no Oscar contra Demi Moore (A Substância), Karla Sofía Gascón (Emilia Pérez), Cynthia Erivo (Wicked) e Mikey Madison (Anora). Este foi o 63° trabalho como atriz de Fernanda Torres, conforme o Internet Movie Database. O Oscar 2025 acontece no dia 2 de março, e a cerimônia vai começar às 21h no horário de Brasília.
Os bastidores da produção gravada na Serra Gaúcha
Saneamento Básico, O Filme, se passa na fictícia Linha Cristal (Monte Belo do Sul), onde a comunidade se mobiliza para construir uma fossa no arroio e acabar com o mau cheiro. Marina (Fernanda Torres), a líder do movimento, descobre que a Prefeitura este ano só tem verba para produzir um vídeo de ficção. Então ela e seu marido Joaquim (Wagner Moura) resolvem filmar a história de um monstro que surge no meio das obras de saneamento. Marina escreve um roteiro, Joaquim faz uma fantasia, Silene (Camila Pitanga) aceita ser atriz e Fabrício (Bruno Garcia) tem uma câmera.
Além disso, o elenco do longa é composto também por Lázaro Ramos (Zico), Janaina Kremer (Marcela), Tonico Pereira (Antônio) e Paulo José (Otaviano). A obra foi filmada entre 11 de julho e 13 de agosto de 2006.

Na época das filmagens, a cobertura de “Saneamento Básico” foi realizada por jovens estudantes de jornalismo do Semanário, entre eles Morgana Braido. A jornalista relembra que teve pouco contato com a produção, mas que conseguiu uma foto emblemática do set. “A foto foi feita em julho de 2006. Lembro que na época eu morava na casa dos meus pais em São Pedro e passei na frente do set de filmagem, quando estava voltando do jornal. Como o filme era uma das pautas principais, pensei em parar e tentar entrar como moradora da comunidade. Todos me conheciam no Moinho Bertarello e permitiram que eu entrasse. Na época, as fotos eram feitas com máquina digital pequena e eu tinha uma comigo. Entrei, cumprimentei todo mundo e quando vi a cena da gaiola fotografei. Eu não imaginava que era uma cena importante, só reconheci o ator Paulo José”, conta. O registro foi publicado como contracapa do jornal em 26 de julho de 2006.

A repercussão foi imediata, como conta Morgana. “Depois da publicação do jornal, não lembro se no mesmo dia, o diretor Jorge Furtado ligou para a direção do jornal, ou alguém da equipe dele ligou alegando que aquela foto da contracapa não poderia ter sido publicada, que era a cena final do filme e que o set de filmagem teria sido invadido por uma repórter disfarçada de moradora local e que iriam processar o jornal”, lembra Morgana. Apesar do susto, nenhuma ação legal foi tomada.
As demais coberturas do filme foram feitas por Ana Carolina Azevedo (in memorian) e Tomáz dos Santos. Em duas oportunidades, a cobertura do filme foi capa do Semanário, em 8 e 12 de julho de 2006. Além disso, na época, os atores participaram de uma entrevista coletiva no Hotel Dall’Onder para falar das gravações.


Figurantes da Serra no cinema nacional
A participação da comunidade foi essencial para o realismo do filme. Mônica Blume, figurante e auxiliar de produção de elenco do longa, descreve a experiência como enriquecedora. “Foi meu primeiro contato com o cinema. Atuei em uma cena com Fernanda Torres, Wagner Moura e Paulo José, e também ajudei a selecionar figurantes”, explica.
Ela lembra do profissionalismo dos atores. “Paulo José fazia exercícios de dicção com um lápis na boca para melhorar a articulação”, comenta. Para Mônica, produções como essa são importantes para a economia e o turismo da região, mas ressalta que as produtoras poderiam valorizar mais artistas locais. “Para poder valorizar os artistas (profissionais) e estudantes de teatro que também temos por aqui, tanto para elenco de apoio como para figuração, ao invés de contratar somente pessoas da comunidade em geral pelo custo ser baixo. Acredito que a cidade dá muitas facilidades para que venham filmar aqui, o que é ótimo, então as produtoras poderiam também valorizar mais os artistas profissionais da cidade e região”, frisa.

Idovino Merlo, outro participante do longa, teve uma experiência singular: na vida real, é fotógrafo, e no filme interpretou justamente um fotógrafo que acompanha o “prefeito” na inspeção de uma obra. “Foi interessante entender como funciona um set de filmagem. Cada gestual, cada ponto exato onde ficar, a coisa toda é muito séria”, relembra.
O filme não apenas destacou a região de Bento Gonçalves como cenário cinematográfico, mas também abriu espaço para talentos locais. Segundo a turismóloga e representante da Bento Film Commission, Denise Holleben, foram em torno de 350 figurantes que participaram, entre pessoas da região e de fora.
Para Mônica, o envolvimento da comunidade trouxe autenticidade à obra. “Muitos figurantes eram ligados às artes cênicas, à dança e à música, enriquecendo ainda mais o projeto”, finaliza. Se destacam a participação do coral Primo Canto, o grupo de danças Ballo D’Italia, Coral Viccentino e a banda de Monte Belo do Sul, Ragazzi Dei Monti, pela música Tarantella Scialusa (uma das trilhas).
Veja mais alguns registros dos bastidores do filme:







Diretor de cinema de “Saneamento Básico” dá entrevista exclusiva

Semanário – Saneamento Básico foi filmado em Bento Gonçalves e se tornou um dos seus trabalhos mais lembrados pelo público. Como foi essa produção?
Foi um prazer incrível. Talvez poucas vezes tenha me divertido tanto fazendo um trabalho como no Saneamento Básico. Primeiro porque foi planejado como uma comédia para ser feita com grandes atores numa cidade pequena, então a gente tinha que se concentrar, todo mundo num mesmo local. Eu chamei os atores, grandes amigos, para a gente se reunir em Bento e ficar durante quase dois meses fazendo uma comédia.
Tem muitas histórias, eu podia fazer um filme só sobre a filmagem, de tanta coisa divertida que aconteceu. Ele é um resultado do trabalho de muita gente e eu estava num momento em que vinha de algumas experiências muito ligadas ao Shakespeare, mas em certo ponto eu queria dar um tempo de Shakespeare. O que veio antes? A Commedia Dell´Arte, que sustentou o teatro por 300 anos e é uma reunião de atores, comediantes, italianos – não por acaso –, normalmente oito, nove personagens. Fui estudar esses personagens e resolvi escrever uma história para esse tipo de comédia. Pensei naquela história, uma cidade pequena que não tem dinheiro para um saneamento básico, mas tem dinheiro para fazer um filme. Chamei aquele elenco, que é um elenco de sonhos. Eu bem que gostaria de fazer o Saneamento Básico II, A Volta de Silene. Silene agora vai ser candidata a prefeita, tendo como promessa finalmente construir a obra do saneamento. Podia fazer, mas é muito difícil de juntar o elenco.
Bento, nesse caso, é nomeada no filme. Eles falam de Bento Gonçalves mais de uma vez, ‘vamos ter que ir a Bento para montar o filme’ e é uma cidade que tem um interior lindo, preservado ainda e que tem uma estrutura grande, porque uma equipe de cinema são mais de 100 pessoas e a gente precisava de um hotel para comportar.
Semanário – O filme foi filmado também em Santa Tereza e Monte Belo do Sul. Você tem alguma lembrança especial da filmagem nestas cidades?
Muitas, de todos os lugares que a gente filmou. Em Santa Tereza, tiveram coisas engraçadíssimas, porque lá a gente estava filmando e recebemos a visita da Fernanda Montenegro. Ela foi nos visitar com o Joaquim, filho da Nanda (Fernanda Torres), que tinha uns 10 anos e estávamos assim com a Fernanda Montenegro e todo aquele elenco, querendo jantar, não querendo dar muita bandeira. Fomos para um restaurante, só que o Joaquim foi para a calçada e começou, de brincadeira, a dizer assim, ‘a minha avó é a Fernanda Montenegro e ela está aqui’. Moral da história, em 40 minutos estava não só o prefeito, como um coral e uma banda cantando para nós. Acabou sendo super divertido, mas foi muito surpreendente, porque a Fernanda se emocionou com eles cantando, virou uma festa.
Semanário – E como surgiu a oportunidade de fazer esse filme?
Esse filme foi produzido pela Columbia Pictures e pela Globo Filmes. Eu tinha feito já o Homem que Copiava e feito o Meu Tio Matou um Cara, com a Fox. Eu me lembro, que cheguei na Sony e disse, vou fazer um novo filme e uma executiva da Sony me perguntou o nome e eu disse, ‘vai ser Saneamento Básico’. Ela fez uma cara, parecia que eu tinha vomitado no tapete, mas depois eu disse o elenco, ‘é a Fernanda Torres, o Lázaro, o Wagner Moura’, e ela disse, ‘está aprovado’. Nome não importa, o filme foi aprovado só pelo elenco (risos).
Semanário – O filme mistura crítica social e comédia de forma muito particular. Você sente que a mensagem dele continua atual?
Acho totalmente atual, quem assiste a história pensa que ‘um país que não tem saneamento básico pode gastar dinheiro em cinema, em cultura? Se as pessoas não têm água, não têm esgoto, vão gastar dinheiro em cultura?’ E a resposta que o filme dá é sim, precisa fazer cinema, cultura, teatro, enfim. Um país tem que fazer tudo ao mesmo tempo. Mas o filme é também uma declaração de amor ao cinema, porque são pessoas que estão fazendo arte e que vão se apaixonando pelo ato de contar a história e como essa história é transformadora e pode ser transformadora para todo mundo.
Semanário – Como foi trabalhar com figurantes locais?
Teve até atores, um casal que está comprando beliche no filme, aquele casal são atores que a gente conheceu numa performance durante uma refeição num hotel de Bento. Teve uma história bem doida também, eu estava na rua filmando em Santa Tereza e um rapaz veio com o avô dele, se apresentou e me deu um disco, músicas italianas para usar no filme. Eu recebi e usei três músicas daquele CD no filme. Eram ótimas, eram músicas de trilha de filme. As pessoas participaram muito de figurantes também e foi muito divertido por vários motivos.
Semanário – Fernanda Torres está agora no centro das atenções internacionais com essa indicação ao Oscar. Como você vê essa conquista dela e quais suas chances de ganhar o prêmio?
Estou muito feliz com essa indicação. Os prêmios que ela já ganhou, o Globo de Ouro e a própria indicação já é um destaque muito merecido, porque a Fernanda, já conhecemos há muito tempo o talento dela, mas as pessoas de fora não conheciam e estão se espantando com o seu talento. Lembrando que ela, com 20 e poucos anos, ganhou o Festival de Cannes, o prêmio de melhor atriz, por ‘Eu sei que vou te amar’.
Ela é uma grande atriz, há muito tempo. Já trabalhei com a Nanda 15 vezes, dirigindo, escrevendo junto, fazendo roteiro, já fiz muita coisa junto e ela é muito inteligente, ela é realmente uma gênia, muito engraçada e tem um repertório incrível, nasceu dentro do teatro, trocamos indicações de coisas, somos amigos há bastante tempo. A primeira comédia que fiz foi com ela, isso em 1990, e é sempre um prazer trabalhar com ela.
Agora, o Oscar, é bom a gente lembrar, é um prêmio da indústria americana para a indústria americana, eles querem valorizar o trabalho deles, eles abrem para outros países, para dar uma beira, para a gente se interessar e querer ver também, mas é um prêmio da indústria americana. Acho que ela tem muitas chances sim, pois acredito que Emília Pérez perdeu um pouco a chance de ganhar o prêmio de atriz por questões extra-filme, pelas polêmicas da Karla Sofía Gascón. Mas ao mesmo tempo significa muito dinheiro ganhar o prêmio, para a indústria americana. Então, talvez eles prefiram dar para a Demi Moore, que vai vender ingressos do filme deles.
Semanário – Você acredita que essa indicação pode abrir novas portas para o cinema?
Acho que esse filme tem muito mérito, ‘Ainda estou aqui’ é um grande filme por vários motivos, muito bem dirigido, muito bem realizado em todos os aspectos, produção, elenco. E mais, é um filme muito importante, porque é um filme que fura a bolha, que fala sobre a democracia, sobre o terror que é viver numa ditadura para fora da bolha das pessoas que já achavam isso. Imagina você viver num país onde, no meio do dia, funcionários públicos, pessoas do governo, podem chegar na sua casa, levar seu pai, seu marido embora, para a morte e você não sabe quem são. Então, esse filme faz isso, nos lembra o terror que é viver numa ditadura, especialmente para os jovens, que nunca viveram isso.
Sobre abrir portas, acho que tem essa função política, social, cultural, e tem essa questão também de ‘fui ver um filme brasileiro e gostei’. São pessoas que estão mais propensas a ver outro filme brasileiro.
Semanário – O que fez o sr. trabalhar tantas vezes com Fernanda Torres? Quais histórias tem com ela durante as filmagens do longa?
Ela é muito inteligente e culta. No momento, ela está falando cinco línguas e tem muito repertório. Ela vai da comédia mais rasgada, do Tapas e Beijos ao drama, faz de tudo. A Nanda, especialmente, é muito atlética. Um dia, a gente estava numa locação onde é a cena do enterro da Silene, aquela capelinha na beira de um rio bem largo, uns 30 metros de largura, no mínimo, e estávamos vendo aquela locação e daqui a pouco eu me viro e a Fernanda pulou no rio. Ela estava de biquíni, se atirou e foi nadando no meio daquele rio enorme (risos).
Semanário – O senhor pode nos contar sobre os seus próximos projetos?
Vou filmar agora, na metade do ano, um longa-metragem que é uma comédia romântica, mas que ainda não tem um título fechado. Chamava de Motel Pérola, mas estou pensando ainda nesse título. Filmo em Porto Alegre em junho.