Reportagem especial de:
Fábio Becker
Elisa Kemmer
Fotos: Fábio Becker
A cesta básica, aponta o Procon-BG, é de R$660; segundo o mesmo órgão, o gás de cozinha custa em média R$71; o metro quadrado, de acordo a Agente Imóvel, vale cerca de R$4.194; as bombas de gasolina comum registram R$4,40, valor semelhante também à passagem do transporte urbano que custa R$4,90. Fora as contas de água, luz, o lazer, formação, gastos com saúde. Números que, altos ou não, parecem se encaixar nas contas de famílias que vivem em um dos municípios mais desenvolvidos do Brasil, onde a renda média, puxada pela força do empreendedorismo e do turismo, entre outros, é de R$3.286.
Às margens da cidade, no entanto, entre os moradores dos bairros periféricos, a visão parece ser outra. Os dados positivos que há anos classificam a Capital do Vinho como um dos melhores municípios para se viver têm alimentado o sonho de uma vida digna para inúmeras famílias que chegam à cidade. Entretanto, o custo de vida, o mercado de trabalho e, por vezes, a falta de políticas públicas e infraestruturas incapazes de acompanhar esse aumento demográfico fizeram com que o significado de “sonho” se traduza em seu sentido de “utopia” e não mais de “meta”.
Ao longo do último mês, o Semanário visitou algumas das comunidades mais vulneráveis de Bento Gonçalves para relatar como é a rotina e a história dessas famílias. Nesta reportagem especial, você acompanha os relatos de algumas dessas pessoas sobre como é a realidade de quem vive com um salário mínimo ou mesmo com muito menos disso em uma das cidades mais abastadas do país.
Uma cidade de contrastes
Bento Gonçalves. Da janela de vidro do último andar de um dos shoppings centrais, temos a visão dos arranha-céus e dos tapumes e guindastes de uma região rica que há mais de século segue crescendo e onde um simples metro quadrado vale milhares de reais. Na fila do bandejão, nos ocupamos mentalmente com cálculos para saber o que sobrará para o fim da semana e para as contas do mês. O almoço custa R$20. Para além dos prédios que tomam o horizonte, poucos quilômetros além do ponto onde a vista não alcança, no entanto, se espalha uma realidade bastante distinta.
Em bairros periféricos, casinhas de cartonado, madeira reciclada, ou tijolo sem reboco, se erguem precariamente sobre morros, ziguezagueando por ruas estreitas. Em cada uma delas, que se espremem em terrenos compartilhados em um número que parece não concebível, vivem famílias, muitas vezes numerosas, em espaços limitados a poucos cômodos e escassa mobília, e que parecem multiplicar a mesma nota de R$20 como mágica, comprando almoço, janta, fraldas, roupa.
A observação que toma forma em nosso relato, e se estende a todos que já viram o mesmo horizonte pelos dois supracitados lados opostos da cidade, é fruto de desigualdades que podem passar despercebidas entre estatísticas positivas, como explica o cientista político, João Ignacio Pires Lucas. “Regiões como o Nordeste do Rio Grande do Sul abrigam cidades que se encontram com os melhores índices de desenvolvimento humano (IDH), o que pode gerar a impressão que o conjunto da população goza daquela condição sócio econômica, o que, infelizmente, não é verdade”, sublinha.
Os fatores para a desigualdade
Assim, as diferenças entre a periferia e os bairros mais nobres, que se observam no simples olhar, se traduzem e estruturam também em seus números contrastantes. Pontuada em levantamento da Exame, em 2013, como uma das 50 cidades brasileiras com a maior renda per capita, ao mesmo passo que conta com um salário médio de R$3.286 — 43% acima da média nacional, embora abaixo do salario mínimo de R$4.277, estipulado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) como necessário para sustentar uma família no país — Bento Gonçalves também abriga, em seus entornos, pessoas que vivem com valores irrisórios. De acordo com dados da Secretaria de Habitação e Assistência Social (SEMHAS), por exemplo, a média de renda per capita das 1091 famílias que recebem Bolsa Família na cidade é de R$97,28, ou seja, pouco mais de R$3 ao dia.
A situação, de acordo com Pires, se explica por fatores estruturais que ao longo da história moldaram a realidade brasileira como um todo. A primeira é a soma e reflexo das desigualdades como as raciais e a de gênero. “É o contraste de um Brasil de lixo e luxo, uma pobreza que pode parecer mais acentuada no Nordeste, por exemplo, mas que perpassa todo o território nacional”, pontua. A segunda é fruto e retroalimento do que chama de “desigualdade regional”. “A tendência é que as regiões mais desenvolvidas acabem atraindo populações de regiões menos desenvolvidas que chegam em busca de emprego e renda, nos moldes do velho ‘sonho americano’”, destaca.
Análises que ganham força ao observar o aumento populacional da cidade, que saltou desde 2010, segundo dados do IBGE, de 107 mil para 120 mil. Crescimento esse que, no entanto, não foi acompanhado pelo desenvolvimento econômico e social necessários para abraçar tantos migrantes. Segundo Pires, nem mesmo os programas sociais, que chegaram a tirar o país do Mapa do Fome, foram suficientes para diminuir as diferenças sociais. “As políticas de assistência tiraram as pessoas da linha da pobreza, mas levaram até certo patamar muito frágil que qualquer crise pode fazer com que elas voltem ao cenário de extrema pobreza outra vez”, lamenta.
Em consenso com Pires, a economista Mônica Beatriz Mattia acrescenta que o caminho para modificar o cenário vai além das políticas de assistencialismo básico, passando por políticas públicas focadas em capacitação. “O setor produtivo está mudando e as pessoas menos qualificadas terão dificuldade em trabalhar. A questão é que tipos de políticas poderão dar conta de trazer essas pessoas de volta ao mercado do trabalho? Não há outra saída que proporcionar meios para que completem o ensino e façam cursos. Só assim poderemos tirar as pessoas efetivamente da pobreza”, conclui.
Conheça as histórias de quem vive na pele a desigualdade
Além da insuficiência nas políticas assistências, puxados por períodos de crise macro econômica e mudanças de mercado, segundo Mônica, as dificuldades de se encontrar empregos e mesmo subempregos intensificaram os problemas dos bairros mais vulneráveis, onde muitos não contam com formação acadêmica. Em dez anos, Bento apresentou redução de 38% no número de vínculos empregatícios, enquanto no Brasil a queda foi de 12,84%. “Os trabalhadores se deslocaram para atividades como microempreendedores individuais, atividades informais, aposentadorias e desemprego”, resume.
Dessa forma, os sonhos de uma melhor condição de vida compartilhado por muitas das famílias que aqui chegaram se convertem na luta pela sobrevivência. Em cada casa, de cada um desses bairros, histórias que se assemelham. Nos relatos, a construção do que é viver às bordas da cidade: a violência, o preconceito, a falta de estrutura, a baixa escolaridade, o dinheiro sempre contado, as necessidades de se viver com quase nada, mas também a vontade de continuar sonhando e acreditando que eles também não estão tão longe do centro, e que, poderão também desfrutar da vista do terceiro andar, sem se preocupar já ao acordar em como garantir três refeições ao dia.
Leia a série completa: