Caracterizado pela alteração das funções do neurodesenvolvimento, diagnóstico precoce da condição permite o desenvolvimento de estímulos para independência e qualidade de vida das crianças

De acordo com o Ministério da Saúde, o transtorno do espectro autista (TEA) é um distúrbio caracterizado pela alteração das funções do neurodesenvolvimento do indivíduo, interferindo na capacidade de comunicação, linguagem, interação social e comportamento. O diagnóstico precoce permite o desenvolvimento de estímulos para independência e qualidade de vida das crianças. Para isso, o Sistema Único de Saúde (SUS) conta com uma rede de apoio e assistência a pacientes com essa condição.

O TEA é um distúrbio caracterizado pela modificação das funções do neurodesenvolvimento, que podem englobar alterações qualitativas e quantitativas da comunicação, seja na linguagem verbal ou não verbal, na interação social e do comportamento, como: ações repetitivas, hiperfoco para objetos específicos e restrição de interesses. Dentro do espectro são identificados graus que podem ser leves e com total independência, apresentando discretas dificuldades de adaptação, até níveis de total dependência para atividades cotidianas ao longo de toda a vida.

A suspeita inicial do transtorno do espectro autista é feita normalmente ainda na infância, por meio da Atenção Primária à Saúde (APS), durante as consultas para o acompanhamento do desenvolvimento infantil. Por ser essencialmente clínica, a identificação de traços do espectro autista é realizada a partir das observações da criança, entrevistas com os pais e aplicação de métodos de monitoramento do desenvolvimento infantil, durante as consultas de avaliação do crescimento da criança, que acontecem em qualquer unidade da APS. A antecipação da suspeita diagnóstica permite que a APS inicie prontamente a estimulação precoce e encaminhe a criança oportunamente para fechamento de diagnóstico na Atenção Especializada.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que haja 70 milhões de pessoas com TEA no mundo, sendo cerca de dois milhões só no Brasil. Mais de 80 anos depois do primeiro caso diagnosticado na história, a falta de informação ainda é a principal barreira para a inclusão desses indivíduos na sociedade.
Por anos, foi considerado um transtorno restrito à infância, mas, com a maior divulgação sobre a condição, o cenário se alterou. O mais comum, contudo, é que pessoas adultas recebam outros diagnósticos frente aos sintomas.

Qualidade de vida

Atuando como psicopedagoga há 15 anos, Letícia Casonatto comenta que a demanda de consultas para crianças com TEA tem aumentado muito nos últimos anos. Segundo ela, o atendimento psicopedagógico proporciona melhorias significativas para pacientes com autismo, ao personalizar estratégias de ensino e focar no desenvolvimento social, comportamental e cognitivo.

O trabalho de Letícia possui uma abordagem abrangente, incluindo a ciência ABA (Análise do Comportamento Aplicada) como parte integrante da intervenção. Além disso, são aplicadas estratégias de intervenção precoce, reconhecendo a importância de iniciar o suporte desde cedo para maximizar o desenvolvimento. Adicionalmente, incorpora-se o modelo Denver, considerando suas diretrizes específicas para intervenção, enfatizando a importância da individualização e adaptação às características únicas de cada indivíduo no espectro autista. “A abordagem multifacetada visa otimizar o progresso e a inclusão social, promovendo o bem-estar global do aluno. Também utilizo intervenções assistidas por animais, que são cães treinados para potencializar os resultados, proporcionando uma maior conexão e vínculo entre paciente, cão e terapeuta”, esclarece.

Esta modalidade promove benefícios emocionais, sociais e sensoriais, estimulando a interação e comunicação, além de proporcionar um ambiente acolhedor para o desenvolvimento. Vale ressaltar que o trabalho de intervenção assistida por animais requer cães treinados, socializados para a função, juntamente com formação na área do profissional.

O trabalho psicopedagógico não deve ser confundido com o trabalho de professor particular, por exemplo. Deve-se buscar profissionais capacitados em intervenção precoce no caso de crianças pequenas, e que atuem com abordagens com comprovação científica. “O psicopedagogo é o profissional da saúde e da educação, que transcende o trabalho de números e letras. Trabalhamos com funções executivas, teoria da mente, além do aprendizado como um todo, com intervenção precoce e no ensino das habilidades básicas. Em resumo, o papel do profissional da área é vital para garantir que as pessoas no espectro autista tenham acesso a uma educação inclusiva e suporte necessário para desenvolverem todo o seu potencial, promovendo uma vida com mais autonomia, mais plena e participativa”, salienta Letícia.


Em adultos, alcançar o diagnóstico adequado pode ser complicado devido a uma série de fatores, que incluem dificuldades de acesso à informação, barreiras no sistema de saúde, questões emocionais e financeiras, sem contar o estigma e o preconceito associados ao transtorno. Os sintomas podem ter um impacto variado em suas vidas. Eles podem ser altamente funcionais em muitas áreas, mas podem enfrentar desafios específicos em termos de interações sociais e comunicação. Com diagnóstico e apoio adequados, muitos podem aprender estratégias para melhorar suas habilidades de comunicação e adaptação social.

Pessoas adultas com TEA costumam apresentar sinais como pouca compreensão para entender o uso de algumas palavras em duplo sentido; hiperfoco em ferramentas, instrumentos, mecanismos tecnológicos e coisas materiais; ingenuidade extrema; linguagem direta; dificuldade em entender expressões faciais e emoções; obsessão por seguir regras, rotinas, detalhes sequenciais de tarefas, entre outros.
Sinais de alerta no neurodesenvolvimento da criança podem ser percebidos nos primeiros meses de vida, sendo o diagnóstico estabelecido por volta dos dois a três anos de idade. A identificação de atrasos no desenvolvimento, o diagnóstico oportuno de TEA e encaminhamento para intervenções comportamentais e apoio educacional na idade mais precoce possível, podem levar a melhores resultados a longo prazo, considerando a neuroplasticidade cerebral.

Anna Luísa Fontana Carpena e Gustavo Henrique Bittencourt de Medeiros são pais de Murilo, de seis anos, diagnosticado com TEA. Eles contam que perceberam que havia algo diferente quando o filho começou a sentar. “Quando o Murilo começou a sentar nós percebemos que tinha algo diferente. Não sabíamos o que era, mas víamos algo distinto. Tudo o que ele pegava na mão, passava ao redor do pescoço algumas vezes. Depois disso, começou a passar os objetos pela frente dos olhos, acompanhando como se fosse uma linha imaginária. Conforme ele foi crescendo, os comportamentos foram mudando. Desenvolveu outras estereotipias e manteve a questão de acompanhar a linha com os olhos. Ele também demorou muito para falar. Até os dois anos era praticamente nada de fala nem de interação”, relembra Anna.

O diagnóstico de Murilo foi dado pela neuropediatra. Ao contrário da maioria dos relatos de pais que descobrem essa condição em seus filhos, a reação do casal foi muito tranquila. “Sempre nos preocupamos em focar no que poderíamos fazer para auxiliar no desenvolvimento do nosso filho. Nunca houve nenhum sofrimento por nossa parte, com relação a ter um filho neurodivergente”, salientam os pais.

Para lidarem com a situação, os pais de Murilo mantêm o mesmo foco, que é auxiliá-lo a ser uma pessoa funcional para que consiga se virar e se entender melhor. Desde que receberam o diagnóstico, Murilo tem acompanhamento com fonoaudióloga, terapeuta ocupacional e nutricionista. Mais recentemente, iniciou também acompanhamento com uma neuropsicóloga, para auxiliar no início do ensino fundamental.

As dificuldades e desafios mudam de acordo com a fase e a idade. “Já passamos por dificuldades de comportamento, de comunicação, de atenção, sensoriais. O importante é sempre entender a demanda do momento e ajudar a melhorar no ponto que atrapalha naquele período”, assegura Anna. Ela ressalta que acha relevante ter em mente que o diagnóstico não define uma pessoa. “Antes de estar no espectro, o Murilo é uma criança como qualquer outra. Nenhum autista é igual ao outro, as dificuldades e as demandas são diferentes. Gostaria que as pessoas pudessem se colocar no lugar do outro e pensar realmente ‘e se fosse comigo? E se fosse meu filho? Como posso ajudar essa pessoa a ter menos dificuldade em lidar com as coisas?’”, reflete.

Acolhimento

Em Bento Gonçalves, o Centro de Atendimento em Saúde (CAS) conta com equipe multidisciplinar que compõe a rede do Programa TEAcolhe. Os pacientes devem procurar a sua Unidade Básica de Saúde (UBS) e solicitar o encaminhamento ao serviço. Conforme Stéfani Fernanda Schumacher, fonoaudióloga e coordenadora do local, o TEAcolhe foi uma conquista para o município, que serve de exemplo para outras cidades, as quais precisam demonstrar interesse e condições de oferecer profissionais qualificados em TEA e infraestrutura para receber a instituição.

Atendendo a todos esses pré-requisitos, foi instalado o TEAcolhe em Bento Gonçalves, que atende mais 21 municípios da região. De acordo com Stéfani, a principal demanda das famílias quando chegam ao CAS são as terapias. “São a parte fundamental do processo de habilitação e reabilitação das habilidades funcionais dos nossos pacientes. Saliento que este é um programa inovador, que está voltado aos atendimentos dos pacientes autistas na complexidade que caracteriza o espectro”, pontua a coordenadora.

Identificação e suporte

Não existem maneiras de identificar apenas visualmente uma pessoa com TEA. Não existe um fenótipo para o autismo, e por isso não faz sentido dizer que alguém parece ou não autista. Como faz parte de um espectro, se manifesta de forma única em cada pessoa, sendo impossível tentar achar um padrão visual de identificação. Esta multiplicidade pode dificultar até mesmo a busca por diagnóstico, que pode levar anos. Justamente pela dificuldade de identificação imediata, autistas, familiares e cuidadores costumam passar por situações constrangedoras quando precisam acessar serviços prioritários ou destinados exclusivamente a pessoas com deficiência.

A Lei 14.624 oficializou o cordão de fita com desenhos de girassóis como símbolo nacional de identificação de pessoas com deficiências ocultas, que é o caso de pessoas com TEA, surdez, deficiências cognitivas e limitações intelectuais. Seu uso é opcional. Quem usa, no entanto, ainda precisa apresentar um documento que comprove a deficiência, caso seja solicitado. Quem não usa continua tendo os mesmos direitos garantidos por lei. O principal objetivo do uso do cordão de girassol é facilitar a identificação das pessoas e permitir que tenham rápido acesso aos seus direitos – como filas, assentos e vagas preferenciais – sem passar por constrangimentos.