Trabalhadores relatam como era o dia a dia daqueles que vieram para Bento Gonçalves por uma oportunidade de trabalho e saem agora com novos medos e cicatrizes

Com a economia pujante, Bento Gonçalves costuma receber de braços abertos os milhares de sonhadores que chegam ao município com uma expectativa de melhorar a vida. Muitas vezes, entretanto, não é isso que ocorre. Nesta semana, mais de 200 trabalhadores foram liberados, após operação da Polícia Rodoviária Federal no município. Os indivíduos atuavam na colheita da uva e em aviários, almejando um bom futuro para suas famílias.

Operação e descoberta

Na noite de quarta-feira, 22 de fevereiro, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) deu os primeiros sinais do que estava acontecendo na cidade. Diversas viaturas chegaram à rua Fortunato João Rizzardo e desencadearam o início de uma operação que seguiria até o outro dia. Em um complexo de três residências, onde funcionava uma empresa, os agentes evacuaram mais de 200 pessoas, sendo a maioria natural do estado da Bahia.

Um dos moradores do local conseguiu fugir, logo após ser ameaçado de morte, e contou às forças de segurança o que estava acontecendo. Esse relato, que ocorreu nesta semana, serviu de ponto inicial para a operação de resgate aos demais trabalhadores em situação semelhante à escravidão.
O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e a Polícia Federal (PF) também estiveram presentes na ação. As equipes se depararam com as centenas de indivíduos em condições precárias, como quartos apertados e muito sujos. “Os trabalhadores relataram diversas situações que passavam, tais como atrasos nos pagamentos dos salários, violência física, longas jornadas de trabalho e alimentos estragados. Também disseram que eram coagidos a permanecer no local sob pena de pagamento de uma multa por quebra do contrato de trabalho”, detalha a PRF.

Mais de 200 trabalhadores precisaram esperar no local para serem devidamente cadastrados e realocados

Promessa de uma vida melhor

Na manhã de quinta-feira, 23, os mais de 200 trabalhadores ainda estavam na rua, aguardando um cadastramento minucioso do MTE. O Semanário acompanhou as atividades no local e conversou com três vítimas, de 25, 27 e 29 anos, que detalharam o início de tudo, desde as promessas até a triste realidade em que se depararam.

Segundo um deles, nascido na Bahia, um contratante conversa pessoalmente com as pessoas mais vulneráveis, oferecendo uma oportunidade melhor de emprego no estado gaúcho. Eles, assim como tantos outros, são cooptados a entrar em algo que se desenrola como um esquema escravagista. “O salário para um mês e 45 dias é R$ 3 mil. Para os outros meninos que chegam primeiro é R$ 4 mil limpo. Foi combinado isso”, explica.

O mais velho dos entrevistados veio da Nigéria, na África, e se deparou com a verdade do recebimento ao fechar seu primeiro mês na empresa. “Eu cheguei em 14 dezembro e comecei a trabalhar seis dias depois. Até hoje, não tenho nenhum valor na minha bolsa, não tenho nada. Trabalhei de 14 a 15 horas por dia e ganhei só R$ 30 em janeiro. Quando recebi, comecei a chorar”, lamenta.

Trabalho interminável

Um dos trabalhadores detalhou os horários que passavam em alguns parreirais de Bento Gonçalves e Garibaldi. Ele disse que todos acordavam às 4h para estar no campo às 5h. A partir daí começavam a trabalhar a iam até meio-dia. Nesse momento, ganhavam um pequeno intervalo para comer. Depois, seguiam na labuta até às 21h ou 22h. Considerando o tempo de viagem para voltar aos quartos e jantar, eles iam dormir próximo da meia-noite para descansar por quatro horas ou menos.

Aqueles que se cansavam durante a atividade eram ameaçados de receber uma multa. Cada uma delas se convertia em menos R$ 600 de pagamento para os homens. Como se não bastasse, aqueles que minimamente demonstrassem descontentamento eram punidos com uniformes molhados, ameaças e agressões verbais e físicas. “Ontem eu não estava aguentando ficar em pé e sentei um pouquinho. O líder que estava comigo disse que ia me dar uma multa e uma falta, só porque eu me sentei para descansar as pernas. Falei que não era de ferro, não sou trator. Ele logo disse que ia me dar uma falta e tirar a minha farda”, lembra.

Dívidas sem fim

Após seduzidos pela visão de um emprego em boas condições, os homens precisavam assumir uma série de débitos, cobrados antes mesmo de começarem a trabalhar. Aqueles que aceitavam a oferta de R$ 3 mil ou R$ 4 mil precisavam renunciar a R$ 800, logo no início. O valor cobria a passagem, do Nordeste para o Rio Grande do Sul. A partir daí, os gastos só aumentavam e os milhares de reais prometidos se tornavam apenas dívidas sem fim.

No acordo do empregador constava ainda uma cota de R$ 400, que deveria ser paga pelos funcionários assim que chegassem. Como muitos não tinham esse valor em mãos, o montante era retirado do salário total. O pagamento cobria três refeições por dia. “O café da manhã era meio pão com metade de um copo de café para passar a manhã toda. Meio-dia a comida parecia aquelas farofas de ração de porco e um pedaço de carne parecendo um peito de um passarinho, e a gente não podia falar, tinha que sofrer calado. Se falássemos, eles iriam bater e dar choque”, comenta.

Além de pouca quantidade servida por refeição, a comida era estragada ou azeda, conforme relatada por eles à reportagem. Por conta disso, ao tentar se alimentar melhor, pediam para comprar produtos fora da pensão onde ficavam. A empresa, entretanto, os conduzia para um comércio que cobrava valores muito acima do normal, como 1 kg de feijão por R$ 25 ou 1 litro de guaraná por R$ 15. Todos os valores se transformavam em débitos retirados de seu futuro pagamento, que jamais chegaria.

Tortura e medo

Se não bastassem as mentiras de uma vida melhor, as horas desumanas de trabalho e as dívidas que ultrapassavam o salário prometido, os trabalhadores precisavam lidar com torturas psicológicas e ameaças, diariamente. O descaso começava nas acomodações, que segundo os entrevistados, abrigavam cerca de 800 homens de uma vez. Todos ficavam alojados em quartos pequenos e com quase nenhuma higiene. Eles compararam o local com uma penitenciária.

Os veículos que os levavam para as parreiras eram velhos e soltavam fumaça na parte interna. De acordo com um dos rapazes da Bahia, muitos passavam mal ao inalar o gás. Já no campo, a carga horária abusiva chegava a ser contestada por alguns dos trabalhadores, mas tudo terminava em mais apreensão. “Tinham produtores que queriam que a gente ficasse até às 21h ou 22h arrancando as uvas. Três horas a mais do que era o contrato. Quando negávamos, eles mandavam ligar para o dono [da empresa]. Aí quando a gente chegava de volta apanhava e tomava choque”, relata.

Até mesmo na hora do suposto pagamento eles sofriam com o descaso da empresa. A responsável por anotar os horários e entregar o salário agia de forma desrespeitosa com os indivíduos. “Quando fui assinar o ponto, eu falei com ela, ‘tenha um pouquinho de pena de nós’ e ela me respondeu: ‘nem um pingo’”, diz um dos cooptados.

No momento de descanso, após as 15 horas de trabalho, eles tinham que tomar banho com água fria. Por conta do horário em que se banhavam, à noite, muitos ficavam gripados, até porque costumavam vestir roupas molhadas após se lavar. “Tinham pessoas que dormiam sujas porque não aguentavam com a água de tão gelada que estava. Eu fiquei doente uma vez. Cheguei no parreiral golfando sangue pela boca, pelo nariz e falava com o rapaz que eu estava passando mal. Minha pressão subiu. Ele ficou olhando para minha cara e dando risada”, recorda.

Os trabalhadores afirmam que os responsáveis pelo local mantinham certos armamentos para coagir as vítimas, como taco de beisebol, porrete, spray de pimenta e arma de choque. Muitos eram eletrocutados ainda no banho, como forma de punição por alguma reclamação durante o dia. “O que passamos aqui eu não desejo para o meu pior inimigo, porque o tratamento que a gente teve não foi humano”, fala.

Na noite de quarta-feira, 22, a PRF adentrou nos alojamentos onde os centenas de homens estavam abrigados. Desordem, pouco espaço, falta de higiene e demais condições inapropriadas foram flagradas

Na busca por justiça

O dono da empresa, um baiano de 45 anos, foi preso ao longo da operação de quarta-feira. O cárcere, entretanto, não durou mais de 24 horas. O acusado de cooptar homens para trabalho escravo pagou mais de R$ 39 mil para sair da Penitenciária Estadual. Até o fechamento desta edição, ele responderá em liberdade por todas as acusações.

Justiça é a única condição que os trabalhadores esperam que recaia sobre o caso. “A gente não vem da Bahia para trabalhar sendo escravizado. A gente vem para conseguir alguma coisa na nossa vida. Tudo o que queremos agora é justiça. Quero que ele pague por tudo que fez. Não fique impune”, pontuou um trabalhador com os olhos cheios de lágrimas.

Trabalho da prefeitura

Ao longo de toda a quinta-feira, a Prefeitura de Bento Gonçalves esteve presente para cooperar com a PRF, MTE e PF. Todos as 215 vítimas foram atendidas ao longo da manhã e tarde para serem cadastradas. O Ministério do Trabalho deve checar as informações, com os horários realizados por cada um, para cobrar os devidos pagamentos do dono da empresa.
Já o poder público municipal presta moradia temporária para os indivíduos. No fim da tarde, todos foram redirecionados para o Ginásio Municipal Darcy Pozza. Segundo o secretário da Secretaria de Esportes e Desenvolvimento Social (Sedes), Eduardo Virissimo, eles receberão alimentação banho, itens de higiene e atendimento de equipes de saúde. “É uma estrutura que permite que possamos oferecer e minimizar o que estes trabalhadores passaram e para dar suporte para o trabalho dos órgãos que estão à frente da investigação’, destaca Virissimo.

Os trabalhadores cooptados tinham uma pequena cozinha à disposição, onde tomavam café da manhã e jantavam ao retornar das tarefas