As recentes mudanças nas regras para a solicitação da cidadania italiana têm gerado dúvidas entre os descendentes de italianos em Bento Gonçalves e na Serra Gaúcha. A nova regulamentação, que visa reformular os critérios de concessão da cidadania, pode impactar milhares de pessoas que buscam reconhecimento da dupla nacionalidade. A cidade, que possui uma forte ligação com a imigração italiana, concentra um alto número de descendentes que veem na cidadania italiana uma forma de estreitar laços com a terra de seus antepassados, além de abrir portas para oportunidades em países europeus.
O que muda na prática
Conforme as novas diretrizes, o direito à cidadania italiana será limitado a somente duas gerações, abrangendo filhos e netos. Essa mudança reflete o objetivo do governo italiano de reforçar os vínculos diretos com o país, exigindo comprovações mais robustas de ligação com a Itália, tanto cultural quanto legal. Além disso, será necessário demonstrar a manutenção de laços significativos com a cultura italiana, como fluência na língua e contato contínuo com tradições e valores do país.
Um novo projeto de lei será apresentado buscando obrigar que os italianos nascidos ou residentes no exterior mantenham vínculos reais com o país europeu, exercendo seus direitos e deveres na Itália pelo menos uma vez a cada 25 anos.
A transmissão da cidadania por via materna em determinados períodos históricos e o período necessário de moradia na Itália também são pontos de discussão.
No entanto, para quem já havia entrado com o pedido até a meia-noite, do horário italiano, de sexta-feira, dia 28, valem as regras antigas, até o momento, não precisando adequar-se aos novos procedimentos e documentação.
Justificativa Italiana
O vice primeiro-ministro da Itália, Antonio Tajani, afirmou que o número de italianos nascidos ou residentes no exterior aumentaram 40% na última década, de 4,6 milhões para 6,4 milhões. Na América do Sul, o número de descendentes com nacionalidade reconhecida passou de 800 mil para mais de dois milhões nos últimos 20 anos.
No Brasil, o número de solicitações aprovadas saltou de 14.000 em 2022 para 20.000 em 2024.Na Argentina, os pedidos de cidadania italiana concedidos passaram de 20.000, em 2023, para 30.000 no ano passado. Na Venezuela foram quase 8.000 pedidos aprovados em 2023.
O Consulado Geral da Itália informou que aguarda mais informações do Governo Italiano para se manifestar melhor acerca do caso. Entretanto, informam que, no momento, todos os agendamentos e procedimentos para reconhecimento de cidadania ‘iure sanguinis’, em qualquer etapa de tramitação, estão suspensos.
Repercussões à decisão

O Deputado Estadual Guilherme Pasin expressou sua contrariedade à medida, considerando-a um desrespeito aos mais de quatro milhões de descendentes de italianos no Rio Grande do Sul que representam, direta ou indiretamente, aproximadamente 40% da população do estado. “Essa decisão não só desconsidera a história dos ítalo-gaúchos, mas também põe em risco um direito que sempre foi assegurado a nós por laços de sangue, desde o nosso nascimento. A cidadania italiana vai além de um simples documento; ela representa um vínculo profundo com a nossa ancestralidade”, afirma o deputado, que também é presidente da Frente Parlamentar Brasil-Itália na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
O Coordenador do Circolo Trentino de Bento Gonçalves, Sandro Giordani, expressa a preocupação verificada entre os residentes da cidade. “Muitos estão buscando informações e entidades do setor estão se mobilizando para emitir manifestação pública contraria a situação”, afirma.
Giordani explica ainda que há um certo constrangimento entre os consulados frente aos questionamentos públicos e a possível retirada de muitas pessoas que acompanham esse movimento pela cidade. Entretanto, nas associações italianas não há maiores discussões, visto que boa parte trabalha a cultura italiana e não necessariamente a cidadania italiana.

O Comitato degli Italiani all”Estero Rio Grande do Sul manifestou sua repudia ao decreto publicado. “A medida, ao limitar tal direito somente a duas gerações (filhos e netos de um cidadão nascido na Itália), viola o princípio da igualdade entre os cidadãos, consagrada no artigo 3º da Constituição Italiana e, em pleno ano das comemorações do sesquicentenário da imigração italiana no Rio Grande do Sul, simboliza um retrocesso na histórica relação entre os dois povos, bem com um abalo nos vínculos que ítalo-gaúchos mantêm com suas origens”, afirma.
Pasin considera também o decreto-lei inconstitucional, ao prejudicar o direito de centenas de milhares de brasileiros que buscam o reconhecimento legítimo de sua herança italiana. Além disso, é buscado a garantia de que os processos cadastrado antes da mudança das regras sigam a legislação anterior. “Não podemos aceitar que um decreto-lei inconstitucional prejudique tantos ítalo-gaúchos e italianos nascidos fora da Itália. A Frente Parlamentar Brasil-Itália está comprometida em lutar para garantir que todos os descendentes de italianos possam concluir seus processos de cidadania de maneira justa e conforme os direitos historicamente garantidos”, conclui Pasin.

Giordani explica ainda que a legislação italiana aceita o trâmite atual na forma em que foi feito, embora precise de apreciação de instância superior em determinado prazo, inclusive para alterar o que foi publicado. Judicialmente, ainda não vê maiores comentários nos grupos sobre a atual situação, embora alguns citam divergência na legislação constitucional na Itália.
A Frente Parlamentar Brasil-Itália no Rio Grande do Sul lançou um abaixo-assinado para mobilizar o apoio à causa dos descendentes italianos no Rio Grande do Sul, no texto é defendido o direito de sangue da população italiana fora da Itália e expressa o sentimento de profundo desrespeito aos descendentes residentes do estado.
O abaixo assinado pode ser acessado através do QR code presente no fim desta matéria.
Sentimento da comunidade
Giordani afirma que a decisão não deve afetar o turismo e a cultura italiana aqui no Brasil. “Muitos usam o passaporte italiano para visitar diversos países, menos a Itália. Precisa ter mais pertencimento as raízes, coisa que falta a muitos, especialmente aos jovens.
No Brasil, talvez alguns núcleos que enaltecem a cultura italiana com maior intensidade na cidadania italiana poderão ter dificuldades ou redução de suas atividades. Mas no geral, quem abraça a cultura, as origens e tradições, não abandona o posto na primeira onda”, finaliza.
Para o Comitato degli Italiani all’Estero Rio Grande do Sul, a situação mostra o desrespeito do país pelos seus descendentes, já que situação similar só ocorreu, justamente, quando os italianos precisaram buscar uma nova pátria. “Assim, nos sentimos agora, novamente. O ‘jus sanguinis’ nos conecta às nossas origens, e talvez na Itália eles não saibam como as preservamos. Isso está representado na nossa fé, na nossa gastronomia, na nossa vitivinicultura, no nosso jeito de ser e até na nossa fala. O nosso ‘talian’ é uma língua única, surgida da mistura de culturas, de dialetos do norte, italiano e do português, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural Imaterial e Língua de Referência Cultural Brasileira”, afirma a instituição.
A entidade defende ainda que, se há necessidade de reforma, que esta envolvo um debate democrático entre todos os descendentes, presentes em vários países do mundo. “Somos os filhos, os netos, bisnetos e tataranetos de uma Itália que já foi nossa. Ao proibir tal continuidade, nos tiram a memória, a dignidade e a história. Que forma lamentável de nos aproximarmos da tão aguardada comemoração dos 150 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul, um belo presente para 4 milhões de descendentes no Estado e para os mais de 130 mil cidadãos que têm tolhido seu direito adquirido”, finaliza.
