No dia 13 de junho de 2019, a comunidade LGBTI+ brasileira comemorava o marco de mais uma importante conquista em sua história de luta contra a discriminação. Como que guiado pelo destino para se enquadrar entre as simbólicas datas de 17 de maio, Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, e o 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTI+ — após mais de seis sessões de um julgamento que se arrastou por meses —, esse foi o dia no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) criminalizou a homofobia e transfobia no país.

Desde então, os atos preconceituosos contra homossexuais e transexuais passaram a configurar crime com pena de um a três anos e multa.  Marcando a passagem do Mês do Orgulho LGBTI+, o Semanário conversou com ativistas, delegados e advogados gaúchos, para entender o que mudou na prática após o primeiro ano da decisão do STF.

Da subnotificação à conscientização

Braço do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV) da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, a primeira delegacia de combate à intolerância do interior do Estado passou a funcionar em paralelo à decisão do STF, em Santa Maria. Embora a Delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância (DPICOI) só tenha sido nomeada oficialmente em 27 de dezembro, ao longo de 2019, registrou oito casos de intolerância, a maioria por injúria racial.

No primeiro semestre de 2020, de acordo com a delegada titular da DPICOI, Débora Dias, a delegacia demonstrou um aumento considerável de casos. Até o momento foram 14 registros, cinco relacionados à discriminação sexual. Apesar do aumento e dos casos de crimes de homicídio não serem computados pela delegacia de combate à intolerância, uma vez que são direcionados às delegacias de homicídio, o número ainda é muito menor do que o real. Provas disso são dadas por pesquisas como a do Grupo Gay da Bahia (GGB), o qual revela que a cada 26 horas um LGBTI+ foi vítima de morte violenta no Brasil, em 2019, e o relatório de denúncias do Disque 100 ( de 2011 a 2018), o qual aponta para uma média de um caso de violência a cada cinco dias no Rio Grande do Sul.

Para Débora, parte da subnotificação pode se explicar pelo desconhecimento ou insegurança da população sobre a nova legislação e acerca da delegacia especializada, ambos recentes. “O pessoal apenas está conhecendo o trabalho da polícia civil nesse sentido, então ainda há muito receio da própria comunidade LGBT em buscar a delegacia”, pontua. Segundo ela, a DPICOI contava com uma agenda de eventos de conscientização para este ano, mas as atividades foram adiadas devido à pandemia do novo Coronavírus. “É importante trabalhar essa divulgação. Falar que eles têm direitos, os quais devem ser respeitados, e que o Rio Grande do Sul conta com uma delegacia especializada com a atribuição de prevenção e combate aos crimes de intolerância”, destaca.

Quanto aos cinco registros de 2020, a delegada diz que são referentes à violência psicológica. A última ocorrência, por exemplo, foi de uma vítima que denunciou o padrasto após anos sofrendo discriminação. “Além das ofensas, tiveram ameaças. Tivemos que entrar, incluso, com medida protetiva. O padrasto dizia que ia bater até o enteado virar homem”, conta Débora. Ela acrescenta, ainda, que a delegacia já registrou o primeiro indiciamento, e que mais alguns, em andamento desde o ano passado, devem ser realizados em breve. “Foi o primeiro, mas é importante divulgar para que as pessoas saibam que elas podem responder por esse tipo de crime”, sublinha.

Legislação específica ainda é uma luta

Foi com olhos marejados que Vagner Oliveira acompanhou a sessão de julgamento do STF que criminalizou a homofobia. Advogado especialista em Direito Homoafetivo e ativista LGBTI+, ele diz que sabia estar vivenciando, naquela noite de 13 de junho, a consolidação de um novo marco histórico e mais uma comprovação de que sua luta podia realmente mudar o mundo.

Para Oliveira, essa é mais uma mudança a ser comemorada em meio a uma série de conquistadas alcançadas, sobretudo ao longo da última década, como o casamento homoafetivo, a retificação de prenome e gênero, a inclusão de duas mães ou dois pais na certidão de nascimento e a mais recente delas: a derrubada da restrição da doação de sangue por homossexuais, decisão tomada em maio de 2020. Apesar disso, lembra que, todavia, ainda faltam legislações específicas voltadas a comunidade LGBTI+. “Não há uma lei que me ampare dizendo que todo e qualquer crime cometido contra travesti, transexual, lésbica ou gay seja um crime homofóbico. É uma decisão judicial que não pode ser questionada, mas não tem força de lei. Pode ser derrubada por um juiz que entenda que não se enquadre “, destaca.

Conforme explica, as agressões contra o LGBTI+ foram enquadradas como crime de racismo até a aprovação de alguma norma específica pelo Congresso Nacional. Atualmente, oito matérias sobre a liberdade de orientação sexual estão paradas, precisando passar pelas comissões antes de seguir ao Plenário da Casa. Segundo Oliveira, a dificuldade e a demora do avanço dessas votações são reflexo de um congresso conservador. “Temos uma bancada completamente tradicional, ligada, em grande parte, a religiosos das Igrejas Católica e Evangélica. Faltam políticos que nos defendam lá dentro, sobretudo, agora com nosso atual presidente, que se declara abertamente contra gays e travestis”, opina.

Falhas do sistema

Para a Presidenta do Conselho Estadual de política LGBT,  Cleonice Araújo, as delegacias ainda falham no atendimento as vítimas de homofobia no Rio Grande do Sul. Segundo ela, uma das maiores “dívidas do Estado” com a comunidade LGBTI+ é um Boletim de Ocorrência (BO) onde conste a identidade de gênero da vítima, uma medida já adotada em outros estados brasileiros. 

Mais do que promover subnotificações, a falta deste documento, explica Cleonice, dificulta a discussão de políticas públicas voltadas à proteção da comunidade LGBTI+. “Se não temos um BO onde apareça nossa identidade de gênero, não teremos os números de pessoas LGBTI+ agredidas. Assim, ficaremos invisíveis aos olhos de políticas públicas”, protesta. Além disso, a ativista denuncia a dificuldade de comprovar o crime de homofobia nas delegacias locais. “Acompanhei, como testemunha, uma menina trans e negra que foi discriminada em uma loja. O delegado não reconheceu nem a questão racial e nem a homofobia, pois a pessoa que humilhou minha amiga era uma senhora rica, da alta sociedade, e nós éramos trans”, assinala.

De acordo com ela, a tipificação da homofobia como crime não muda a realidade vivida pela comunidade LGBTI+, sobretudo, em regiões onde o preconceito é historicamente arraigado. “Enquanto a população não tiver consciência que tem que respeitar as pessoas não importa a cor ou a sexualidade, mas por serem seres humano, não teremos paz. O importante é que se entenda o significado da palavra respeito. Respeitem minha diferença, como respeito as de vocês. Ao fim, ninguém é igual a ninguém”, exclama.

Para além das leis, a inclusão

Ainda hoje, após 30 anos, Cleonice se pega ouvindo o som da água e as picadas de formiga e de mosquitos sentidas na mais longa noite de sua vida. Explorada por quatro anos por cafetões e cafetinas, após ter sido expulsa de casa aos 11 anos, se escondeu embaixo de uma ponte para fugir do cafetão que a perseguia armado. Com uma vida marcada pelo preconceito, trabalha para evitar que outros passem pelo que ela já passou.

Para ela, as principais bandeiras na defesa, sobretudo de travestis e transsexuais, devem ser o amparo e a educação. Neste sentido, destaca, orgulhosa, os 16 anos de trabalho e conquistas da ONG Construindo a Igualdade, de Caxias do Sul, na qual é voluntária. Consolidada como núcleo de referência LGBTI+ e de mulheres vítimas de violência, a organização auxilia na retificação de prenomes, conta com advogado, assistente social, entre outros. Além disso, oferece aulas de técnicas de redação, inglês, e curso de cabeleireiro.

 A iniciativa mais ambiciosa, porém, começará a tomar corpo em uma data ainda não confirmada deste mês. A exemplo da Parada LGBT de São Paulo deste ano, o Bloco Arco-Íris, fundado pela ONG, fará uma live show de mais de quatro horas, com o propósito de anunciar a criação de uma vaquinha virtual para construção de uma casa de acolhimento para pessoas que, como Cleonice, foram expulsas de casa por preconceito. “A ideia do projeto é que a pessoa seja acolhida por até um ano na casa. Neste tempo, ela vai terminar o ensino fundamental e o médio, terá os cursos que já oferecemos hoje, além de outro profissionalizante e, ao fim, buscaremos um emprego formal para ela”, adianta.

Dúvidas quanto a programação da live ou sobre a vaquinha podem ser encaminhadas para a página da ONG no Facebook.

Denuncie

Casos de homofobia podem ser denunciados anonimamente pelo Disque 100, ou pelo 197 (Polícia Civil), ou ainda, no 190 (Brigada Militar, em casos de emergência).