Garantida a subsistência e uma vez assentados com suas famílias na então ainda inóspita e selvagem região da Serra Gaúcha do século XIX, os primeiros imigrantes, ávidos de perpetuar uma ligação com suas origens, deram vida a um dos maiores símbolos culturais da região: o vinho colonial. Foi pensando em valorizar essa tradição e garantir uma nova oportunidade de ganho para os pequenos produtores rurais que foi sancionada a Lei do Vinho Colonial, que retira o produto da informalidade.
De caráter federal e em vigor desde 2014, a legislação só começou a ser implantada no Rio Grande do Sul em 2018, quando os primeiros registros de agroindústrias familiares começaram a ser distribuídos pelo Ministério da Agricultura. Um ano após a iniciativa, porém, a busca dos produtores pela regulamentação segue baixa. Ao todo, apenas 20 agricultores estão regulamentados para comercializar o produto no estado. Na Serra Gaúcha, região com maior produção de vinho de todo o país, 10 produtores contam o registro, três deles são de Bento Gonçalves. Além disso, na Capital do Vinho, outras 22 esperam por regulamentação. Segundo o último Censo Agropecuário de 2006, existem mais de 8 mil produtores de vinho artesanal no país, a maioria na serra gaúcha.
Discussões para fomentar a procura
Foi com a intenção de debater medidas de suporte a ampliação da produção legalizada do vinho colonial que um grupo de trabalho formado pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater/RS-Ascar), Embrapa Uva e Vinho, Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Regional do Rio Grande do Sul e do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), estiveram reunidos pela primeira vez no ano, na última semana.
Após a apresentação do nivelamento da legislação feita pela Emater/RS-Ascar de Bento Gonçalves, foi debatido também a situação do suco de uva obtido através da panela extratora, outro produto de caráter artesanal incluso na Lei do Vinho Colonial. Outro assunto, foi à organização de treinamentos para profissionais e produtores. “O que buscamos é a qualificação da produção. Ainda temos problemas com vasilhame e etapas do processo, por exemplo, por isso discutimos a ideia de criar cursos que abordem boas práticas, não é para uniformizar a produção, mas para qualificar”, aponta Thompson Didoné, chefe do escritório da Emater em Bento Gonçalves. Além da ênfase nas Boas Práticas Agrícolas e nas Boas Práticas Enológicas, os treinamentos também devem abordar questões de comercialização e marketing, para os produtores, além de questões técnicas direcionadas aos enólogos e engenheiros químicos que, segundo a legislação, precisam acompanhar a produção do vinho colonial.
Criada para reduzir os custos e burocracias da regulamentação de vinho artesanal, a Lei do Vinho Colonial permite que o produtor rural comercialize o vinho artesanal, até então feito apenas para consumo familiar, sem a necessidade de criação de uma empresa e de sua inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ). Além disso, outra vantagem é a taxa de contribuição social de 1,5%.
Os detrimentos da legislação como o limite de 20 mil litros de produção e, sobretudo, a obrigatoriedade de vendas diretas, sendo proibido o comércio em varejo, têm levado alguns produtores, conforme explica Thompson, a aderir a Lei do Simples Nacional, em vigor desde 2018, uma segunda alternativa para quem pretende regulamentar a produção do vinho artesanal. “Com o Simples Nacional não há limite de produção e o produto pode ser comercializado em atacado e varejo, mas os impostos vão de 4% até 12%, conforme o faturamento”, assinala.
Além dos agricultores que optam pelo Simples Nacional, o baixo número de produtores regulamentados na Lei Nacional do Vinho, se explica também pelos custos para adequação de equipamentos e propriedade dentro dos requisitos e normativas sanitárias mínimos estipulados pela legislação.
O problema que também foi discutido ao longo da reunião deverá ser a tônica também dos próximos encontros. A ideia, conforme explica o pesquisador da Embrapa, Mauro Zanus, é buscar alternativas para facilitar o investimento do pequeno produtor que a princípio teria dificuldades em arcar com os custos inicias, que giram na média de R$30 mil até R$100 mil. “Pensamos em criar um Programa Estadual de Registro e pensamos que possa contemplar alguma politica pública que ajude a dar facilidades para o produtor se estabelecer, talvez criando linhas de crédito facilitadas”, sublinha.
Ganhos para o produtor e para o turismo
Mais que garantir a qualidade do produto ao consumidor, a Lei do Vinho, segundo Zanus promove novos ganhos aos pequenos produtores. “O vinho colonial sempre existiu, mas era clandestino. Agora, o turista interessado em conhecer essa tradição pode comprar o produto sem medo de ser parado e punido, além de que se torna uma nova fonte de renda para as pequenas propriedades rurais”, assinala.
Segundo ele, as vantagens da regularização, contudo, se estendem também ao fortalecimento do enoturismo e do turismo rural e na manutenção de nossa paisagens, visto que a Lei obriga que pelo menos 80% dos produtos comercializados tenham origem em vinhedos próprios. “Os dados do cadastro vitivinícola mostram um encolhimento nas áreas de vitícolas. Temos que promover a manutenção dos vinhedos, pois é esse cenário que atrai os turistas que visitam a Serra Gaúcha”, finaliza.
Um dos pioneiros a se regulamentar
Localizada de frente aos vales da Linha Leopoldina, interior de Bento Gonçalves, a cantina de Vitório Somensi, 61 anos, é uma das primeiras a poder produzir e comercializar o vinho colonial na região. O registro para produção foi concluído em março deste ano.
Com nove hectares de parreiras e uma produção média de pouco mais de 13 mil litros, Vitório, investiu cerca de R$ 100 mil para adaptar o porão da casa centenária herdada de seus pais, e investir de vez na produção de vinho colonial, atividade que começou como hobbie há apenas seis anos. “Tínhamos dois mil quilos de uva e resolvemos fabricar um vinho para consumo no porão de um amigo, mas nunca pensei em vender. Com a inserção em grupos de produtores chegamos à Emater, que nos orientou a começar o negócio”, comenta Somensi.
Coincidindo com a chegada dos rótulos com códigos de barra, que possibilitam a venda pelo Simples Nacional, a cantina dos Somensi participou de sua primeira feira, a Fenavinho, em junho. Os resultados, conforme conta Natália, 33 anos, filha de Vitório, trazem otimismo não só para a família como para a efetividade da consolidação do vinho artesanal como símbolo de nossa região. “Foi tudo positivo. O pessoal que nos visitou dizia que queria os vinhos feitos de modo tradicional, não os rótulos de grandes vinícolas. Queriam conhecer a cultura, o vinho feito da forma que faziam os imigrantes”, comenta animada.