Segundo o último Censo, existem mais de 300 casas de religiões de matriz africana no município
As religiões de matriz africana em Bento Gonçalves têm se fortalecido ao longo dos anos, mesmo diante de desafios como o preconceito e a intolerância. Entre as principais tradições religiosas de origem africana praticadas na cidade, destacam-se o Candomblé, a Umbanda, o Batuque e a Quimbanda. Embora o Censo de 2010 tenha registrado 354 casas ou praticantes autodeclarados, estima-se, com base em informações fornecidas pela prefeitura e pelo Movimento Negro Raízes, que esse número tenha triplicado nos últimos anos, abrangendo não apenas os praticantes, mas também simpatizantes que não se identificam formalmente como adeptos das religiões afro-brasileiras, como cartomantes.
A atuação do Conselho Municipal
Criado em 2018, o Conselho Municipal dos Povos Tradicionais de Matriz Africana de Bento Gonçalves trabalha para a promoção e preservação dessas tradições religiosas. O vice-presidente do Conselho, Evandro Soares, destaca que a missão da entidade é fortalecer a participação democrática dos representantes dessas religiões no município, ao mesmo tempo em que se busca difundir o respeito às práticas religiosas. A regulamentação das casas de culto é um dos principais focos de atuação.
O Conselho também promove políticas públicas que garantam o pleno exercício dos direitos religiosos dos praticantes, além de ações contra a intolerância, que ainda é um problema enfrentado na cidade. “Ainda se defronta o desconhecimento da prática e, portanto, o desrespeito aos ritos, que acabam gerando casos de intolerância religiosa. O Conselho sempre procura deixar claro que atos de intolerância são considerados crime conforme o Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei 2.848/1940), em seu artigo 208, o qual estabelece que é crime “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia, ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, pontua Soares.
O secretário também aborda sobre o artigo 5° da Constituição Federal, que estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias, bem como seus praticantes. “Em relação aos ritos, o Conselho trabalha na orientação ao respeito dos horários para cumprimento das liturgias, a notificação aos órgãos de segurança das datas e horários das sessões ou festas e principalmente o não revide a possíveis atos de violência”, complementa.
Há ainda a intenção de ser lançada uma cartilha educativa com informações gerais sobre a relação da religião de matriz africana com o meio ambiente e formas de conduta. “Vai ser um trabalho informativo, pois cada casa pratica seu preceito de forma tradicional sem interferência externa”, frisa Soares.
Desafios e preconceitos
Um dos principais desafios enfrentados pelas comunidades afro-religiosas em Bento Gonçalves é o desconhecimento em relação aos seus ritos, o que acaba gerando preconceito e discriminação. Esse cenário é reforçado pela falta de informação e pela propagação de estigmas, como a associação indevida entre as religiões de matriz africana e práticas demoníacas. O coordenador do Movimento Negro Raízes, Marcus Flavio Ribeiro, ressalta que esse tipo de intolerância está intimamente ligada ao preconceito racial. Para ele, a desinformação é uma das principais fontes de preconceito.
Casos de intolerância, como a depredação de um terreiro em Veranópolis, mostram que ainda há um longo caminho para o respeito pleno, conforme afirma Ribeiro. “Houve uma audiência com o Ministério Público do município de Veranópolis para as tratativas referente ao caso de depredação do terreiro”, pontua.
O papel das religiões afro-brasileiras na cultura local
As religiões de matriz africana também têm contribuído para a vida cultural de Bento Gonçalves. Eventos como o Encontro de Quimbandeiros e as carreatas em homenagem a São Jorge (Ogum) são exemplos de manifestações que têm ganhado mais visibilidade e atraído participação popular. “Sempre que possível, busca-se fazer atividades nas datas religiosas dos cultos relacionados ao tema no município. Todas as casas fazem trabalhos sociais em prol de seus integrantes, e recentemente no caso dos eventos climáticos que assolaram o estado, houve participação efetiva no serviço voluntário de atendimento aos atingidos, nas doações de alimentos, itens e mão de obra na ajuda humanitária”, ressalta Soares.
O diálogo inter-religioso e a busca por respeito
Apesar dos desafios, o diálogo inter-religioso em Bento Gonçalves tem avançado. Segundo Soares, os líderes afro-religiosos estão abertos ao diálogo com outras tradições religiosas, buscando sempre o respeito mútuo. “São ações que visam apresentar à comunidade bento-gonçalvense que a tradição dos representantes dos povos de matriz africana é somente a forma de demonstrar a fé”, salienta.
Há também uma colaboração constante com entidades de outras cidades, como Caxias do Sul e Porto Alegre, com o objetivo de fortalecer a visibilidade das religiões de matriz africana em Bento Gonçalves.
Resistência
As religiões de matriz africana em Bento Gonçalves seguem resistindo e se fortalecendo, apesar dos desafios impostos pelo preconceito e pela intolerância. A busca por respeito, regulamentação e valorização das tradições afro-brasileiras permanece como uma luta constante, conforme destaca o Babalorixá ou Pai de Santo, Rafael Sampaio. “Não queremos fazer a população de Bento Gonçalves acreditar na nossa religião, apenas queremos respeito de todos. Sabemos que a intolerância tem uma força muito grande na cidade, mas como eu sempre coloco em pauta: temos que respeitar o espaço de cada um, seja religião de matriz africana, catolicismo, evangélicos, etc. Mas sei que não podemos fazer as pessoas acreditarem na fé que praticamos”, enfatiza.
Casas de religião
As casas funcionam como núcleos de vivência comunitária e familiar, sendo locais sagrados de encontro, celebração e manifestação da fé. Cada Ilê – como também são conhecidos os terreiros, casas de religião ou casas de Axé – tem sua própria dinâmica, com reuniões que podem ocorrer semanalmente ou a cada 15 dias, onde são realizadas confraternizações e cerimônias, que incluem o som de tambores e outros instrumentos.
A Ialorixá ou Mãe de Santo, Lisiane de Castro Pires, destaca a importância dessas casas para a manutenção das tradições e rituais afro-religiosos, comparando-as a famílias com características próprias. Cada casa segue seus preceitos, mas todas compartilham um objetivo comum: o cuidado com seus adeptos, ou “filhos de Santo”, e com a espiritualidade. A liderança nessas casas, seja exercida por pais ou mães de Santo, envolve uma grande responsabilidade emocional e espiritual. “Eu percebi bastante dificuldade logo no início, havia uma cultura das casas de matriz africana serem mais reservadas e não sentirem o acolhimento para poder denunciar casos de intolerância religiosa. Depois da criação do Conselho melhorou muito, houve uma diminuição de casos de preconceito religioso. Ainda acompanhamos casos pontuais, mas se percebe uma maior conscientização”, destaca.
Lisiane acredita que a população de Bento Gonçalves está cada vez mais consciente da importância dessas religiões como parte integral da cidade, assim como qualquer outra manifestação religiosa.
A trajetória de Lisiane na religião começou ainda na infância, aos nove anos, acumulando mais de três décadas de prática religiosa. Ela compartilha que, ao longo do tempo, cada vivência e cada pessoa atendida lhe proporcionou aprendizado contínuo, reforçando que a evolução espiritual é um processo sem fim. “Tenho 16 anos de casa aberta, Ilê oficializado. No decorrer desse tempo aprendemos muito, cada filho de Santo, cada situação é uma aprendizagem para todos nós, que costumamos dizer que nós vamos morrer e não vamos aprender tudo, porque a espiritualidade é exatamente isso: a evolução constante”, salienta.
Sobre a colaboração entre os líderes das religiões de matriz africana em Bento Gonçalves, Lisiane revela que há uma relação muito boa. “São como famílias. Cada família religiosa vive o seu dia a dia, as suas particularidades e dificuldades. Quando há algum evento de confraternização há essa colaboração também. Unimos esforços para entrar em debates, buscar políticas públicas, dividindo as mesmas dores e preconceitos”, finaliza.