Foram anos de muitas provações. Ivete Boroto passou por inúmeras perdas e todas as etapas do tratamento do câncer de mama e hoje serve de inspiração para diversos pacientes, com quem mantém contato semanal no setor de oncologia do Hospital Tacchini
A alegria e o sorriso contagiante, a conversa leve e descontraída, o emaranhado de lãs e agulhas de tricô, um chimarrão e a simplicidade da vida encobrem totalmente as dores, angústias e sofrimentos já vividos por Ivete Boroto. Aos 56 anos, a artesã nascida na Linha Presidente Soares, interior Garibaldi, divide o tempo entre os trabalhos manuais e o voluntariado, algo em que mergulhou de corpo e alma.
Os problemas de saúde fizeram parte da vida de Ivete desde muito jovem, ainda enquanto morava na colônia. Uma forte intoxicação causada por agrotóxicos fez com que, durante cerca de três anos, precisasse ficar fechada no quarto toda a vez que os irmãos chegavam da lida na roça. “O simples fato de sentir o cheiro dos produtos utilizados me deixava extremamente mal. Precisei me isolar, fazer tratamentos. Foi horrível”, conta.
Quando Ivete tinha 28 anos, a família resolveu se mudar para Garibaldi, ficando na casa paterna apenas o irmão mais novo, Acir, que investiu todas as suas energias na descontaminação da terra e no cultivo orgânico, situação que prevalece até os dias atuais. Hoje, o local serve como escola para técnicas orgânicas e recebe estagiários e turistas de todas as partes do Brasil e do exterior.
A vida na cidade
Embora a mudança tenha sido uma opção, foi difícil, principalmente para os pais, já com certa idade, largarem os afazeres do interior e passarem os longos dias na zona urbana, sem tantas ocupações quanto a colônia oferece. Ivete logo conseguiu emprego num restaurante e, algum tempo depois, migrou para o comércio. Mas foi no turismo que se realizou. Durante seis anos, se ocupou com o ofício de guia para grupos que desejavam conhecer Caldas Novas (GO). “Eu montava os pacotes, formava os grupos e acompanhava a viagem. Foram seis anos maravilhosos, em que conheci muitas pessoas, fiz muitos amigos, os quais tenho até hoje”, destaca.
Mesmo assim, nos fins de semana, durante a safra e em outros períodos, tanto os pais quanto Ivete e outros irmãos, no total são seis, continuaram ajudando o jovem empreendedor, o que ocorre, inclusive, atualmente. “Meu irmão viaja muito, participa de inúmeras feiras e eventos divulgando e comercializando sua produção de espumantes e vinhos orgânicos, que fazem muito sucesso. Nestes dias, a mãe e eu vamos lá para a colônia e cuidamos das coisas, dos bichos”, frisa.
Tendo sua maior parceira a mãe, Odila, de 85 anos, extremamente ativa, Ivete vê a vida com alegria e com entusiasmo. Uma das suas ocupações, atualmente, é a produção de lindas peças de tricô e crochê, que comercializa para todo o Brasil, e para doar. Enquanto isso, a mãe faz biscoitos, pães, rapaduras e outras delícias que são consumidas pelos turistas que frequentam o estabelecimento do filho, na Linha Presidente Soares.
Período nebuloso
Em 2017, aos 49 anos, Ivete começou a sentir algo que caracteriza como “estranho” na mama esquerda. “O mamilo inflamava, eu procurava a médica, fazia todos os exames, mas estava tudo bem. Nada era diagnosticado”, lembra.
Neste meio tempo, seu sobrinho Miguel, de apenas quatro anos, filho do irmão Acir, foi diagnosticado com câncer no rim. “Foi tudo muito rápido. Precisaram retirar o rim, atingiu o pulmão, e depois de praticamente um ano de tratamentos, ele faleceu. Era surreal ver nosso menino no hospital dando força para outras crianças, dizendo que Jesus estava com eles e andando com um crucifixo na mão. São cenas inesquecíveis, que balançaram muito conosco, com toda a família”, enfatiza.
Durante o ano em que o sobrinho permaneceu em Porto Alegre, Ivete ficou na casa do irmão. “E o mamilo foi sumindo, começou a sair secreção da mama, mas nenhum exame dava alterado. Eu tinha muita dor, aquilo se transformou numa ferida, mas eu sempre ouvi dizer que câncer não doía. Estavam tratando como infecção, mas eu tinha certeza de que alguma coisa estava errada”, comenta.
Em 2018, com o falecimento do sobrinho, uma grande revolta tomou conta da família. A dor e a angústia só aumentaram, tanto que, dois meses após, o pai de Ivete também faleceu, em seus braços. Mesmo com a idade avançada, à época com 91 anos, ele não tinha nenhuma enfermidade, mas foi tomado pela tristeza de acompanhar a partida do neto, que era o maior motivo de alegria para todos.
Com a morte de Miguel, Ivete passou um tempo na colônia, ajudando o irmão, mas chegou o momento em que, devido às dores, resolveu procurar o ‘postinho’. “O médico me examinou e disse que não tinha nada de infecção. Senti um alívio, mas vi que ele prescreveu muitos exames, e todos eles escrito “urgente”. Foi então que acabei parando no setor de oncologia do Tacchini, onde fui encaminhada para uma biópsia. O resultado não podia ser outro: realmente estava com um agressivo câncer de mama. Cirurgia (mastectomia), esvaziamento axilar, quimioterapias e radioterapias começaram a fazer parte da minha rotina. Há oito meses eu tinha conhecido uma pessoa que passou a fazer parte da minha vida e me acompanhou nos piores momentos, o Valdir Realante Oliveira, que muitos conhecem como Bagé. Foi meu porto seguro. E, em 2021, ele foi levado pela Covid-19”, recorda.
Ivete sentiu a maior dor, a da mutilação, segundo ela mesma intitula, ao ver um pedaço de seu corpo sendo retirado, sendo que é um dos órgãos que também representa a vaidade feminina, porém, optou por não realizar a reconstituição mamária, uma vez que conviveu com várias pacientes em situações de rejeição e problemas inerentes ao tratamento. Além disso, quando percebeu que seu cabelo havia começado a cair, chamou a cabeleireira em sua residência e pediu para que raspasse tudo de uma vez. “Os cabelos caíam no banho, eram chumaços de uma vez só, no chão. Não suportava mais ver aquilo”, disse.
“Mas eu não quis tomar conhecimento daquilo tudo. Disse ao médico que fizesse o que precisava ser feito, encarei a doença com toda a minha força. Sofri muito, não nego, principalmente com as ‘químio vermelhas’. Foram horríveis. Para terem uma ideia, eu conseguia dormir no meu quarto duas noites após a aplicação, depois não conseguia mais de tanto cheiro da medicação. Graças a Deus, daquela época até agora as coisas já evoluíram muito”, enfatiza.
O tratamento contínuo durou mais de um ano, com cerca de 30 aplicações de quimioterapia, 17 sessões de imunoterapia e 25 de radioterapia. O acompanhamento, como a maioria dos casos, dura cinco anos, com consultas e exames a cada seis meses. “Quando recebi alta, não sabia se eu ria ou se eu chorava. Nem estava acreditando”, destaca.
“E agora? O que eu faço?”
Liberada, de alta, podendo levar uma vida normal, Ivete não conseguia se ver longe das amizades que fez na Unidade de Alta Complexidade em Oncologia (UNACON) do Hospital Tacchini. “Ninguém quer voltar atrás, mas eu sentia uma ligação muito forte com aquilo tudo. Lembrei das palavras de um médico que me disse que eu devia me capacitar para ajudar outras pessoas”, relata.
Foi então que, num determinado dia, Ivete recebeu uma ligação que iria mudar o curso da história. Ela estava sendo convidada para uma reunião no referido setor, em que seria colocado em prática o projeto “Pacientes Parceiros’.
De lá para cá, a ida semanal ao Hospital Tacchini, sempre às sextas-feiras, para um momento de troca de experiências, tem ajudado muita gente. “Eu circulo pela sala de químios e deixo as pessoas bem à vontade. Se a pessoa quer falar ela fala, se não quiser, não fala. Tentamos fazer uma verdadeira troca. E as coisas vão fluindo. Os depoimentos saem de onde menos esperamos. Há uma mudança muito grande em quem passa a ter este acompanhamento”, comemora.
Ivete inicia o trabalho contando sobre sua experiência não somente com a doença, mas na vida, suas perdas, todo o contexto que a levou até lá. Fala do tratamento, das dificuldades, das reações. “Muitas pessoas dizem que se eu passei por tudo isso e estou lá, eles também vão conseguir”, diz.
De tudo isso, a voluntária leva uma lição para a vida. “Eu aprendi muito. Eu não consigo mais me preocupar. O mundo está desabando do meu lado e eu estou bem quietinha. Eu não me preocupo mais. Eu vivo o hoje. O amanhã a Deus pertence”, sintetiza.
Ampliação do Projeto
O sonho da “paciente parceira” é de que o projeto seja desenvolvido em todos os hospitais que têm oncologia. “Estes pacientes precisam da gente. Eu vejo a vida totalmente diferente. Eu como o que eu quero agora, eu uso minha melhor roupa em casa. Como eu queria ter tido esta vida lá atrás”, fala com emoção.
E finaliza: “Cerquem-se de pessoas positivas. Durante o tratamento, não recebam visitas que te puxem para baixo, que te tragam exemplos ruins, tristes ou negativos. Cada paciente é único e merece ser tratado como tal. Cada um sabe de suas dores e de seus medos. O alto astral, a positividade, a alegria e o entusiasmo são essenciais em todo o processo. Ninguém quer ouvir o diagnóstico da doença, mas depende de cada um atrair o melhor para sua cura. Você precisa de pessoas que te motivem, que te coloquem para cima. Você nunca vai conseguir ajudar outra pessoa se você a desanimar”, encerra.