Centro registra 1261 casos de atendimento de vítimas em 2018, número é 35% superior ao registrado em 2017

Antes de fechar a primeira semana de 2019, o Rio Grande do Sul registrou o primeiro caso de feminícidio do ano. Jocelaine de Paula Netos, 45 anos, foi atingida três vezes com golpes no tórax e no pescoço. O assassinato foi cometido pelo companheiro da vítima, Geraldo Mariani, 56 anos, após uma discussão na casa onde o casal vivia, no interior de Garibaldi. O fato que mobilizou a região da Serra Gaúcha não é caso isolado, e apenas aumenta as estatísticas da violência contra a mulher em todo o Brasil. De acordo com levantamento atualizado diariamente pelo pesquisador Jefferson Nascimento, doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo, já são 67 feminicídos apenas neste ano.

A escalada da violência doméstica, contudo, não se atém aos casos de feminicídio; também são observados aumentos em registros de estupro, tentativas de feminicídio, lesão corporal e ameaças. Em Bento Gonçalves, o Centro de Referência da Mulher que Vivencia Violência (Revivi), registrou 1.261 atendimentos de vítimas de violência doméstica, ou seja, mais de 3 casos por dia, um aumento de 35% quando comparado com 2017.

Os números registrados pela Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul também endossam esse crescimento. De 2012 a 2018, são 5.462 ocorrências apontadas na cidade.

Muito além da violência física

A coordenadora do Revivi, Regina Zanetti, destaca que a violência sofrida pela mulher não ocorre isoladamente, sendo antecedida, na maioria das vezes, por outras formas de violência. “A agressão suportada pela mulher não se restringe apenas à violência física, como alguns podem pensar, mas, também, inclua-se a esta violência psicológica, sexual, patrimonial e moral”, pontua.

Segundo Regina, o ciclo de violência, que em últimos estágios podem resultar em agressão física e mesmo feminicídio, normalmente são antecedidas pela violência psicológica que causa danos emocionais graves. “A maior parte das denúncias ocorrem por violência psicológica através de ameaças, xingamentos e humilhações”, destaca.

Para Regina, além do medo que impede que muitas mulheres peçam ajuda, há também o desconhecimento de que as denúncias não se limitam aos casos de agressão. Nesse sentido, atividades de prevenção e conscientização como as desenvolvidas pelo Revivi e pelo Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) seriam meios para diminuir os casos de crimes “mais violentos”, em fases inicias do ciclo de violência. “Há a necessidade profunda de uma transformação cultural, que está impregnada em nossa sociedade, onde a mulher ainda é considerada objeto de posse por alguns homens. É por isso que o Revivi também realiza palestras, rodas de conversas e debates em escolas municipais e estaduais, UBSs, ESFs, e realiza campanhas de conscientização no combate a violência doméstica na zona urbana e rural do município”, destaca.

Medidas Protetivas e sua aplicação

Segundo a Lei Maria da Penha, a violência doméstica e familiar contra a mulher é configurada como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Diante de qualquer uma dessas situações, a vítima pode solicitar as medidas protetivas, que se dividem em dois grupos: as que obrigam o agressor a não praticar determinadas condutas; e as que são direcionadas à mulher e seus filhos, com o objetivo de protegê-los.

Para a delegada titular da Deam, Deise Salton Branche, as medidas têm surtido importante efeito na proteção da mulher, mas o maior problema está no desrespeito dos homens às ordens judicias. “Nesses casos podemos pedir a prisão preventiva.Por isso que sempre orientamos a mulher que possui medidas protetivas ao órgão policial quando ocorrer o descumprimento”, assinala.

Por se tratar de medida de urgência, as medidas protetivas podem ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes. Em Bento, elas costumam ser expedidas em prazos inferiores aos previstos em lei. “ O fluxo da rede de combate à violência doméstica de nossa cidade é bastante ágil. Embora a lei preveja que a delegacia deva mandar a ocorrência para o Fórum em 48h, costumamos mandar, no máximo, no dia seguinte. Casos urgentes são imediatamente encaminhados”, sublinha a delegada.

Uma outra forma de ler os números

Apenas 96 dos 497 municípios gaúchos contam com algum serviço especializado de atendimento à mulher vítima de violência doméstica, sendo que só 22 contam com Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam), segundo o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Na Serra Gaúcha, somente Caxias do Sul e Bento Gonçalves aparecem na lista. Além do Deam, a Capitald o Vinho também conta com Patrulha Maria da Penha e o Revivi.

Para Deise, a existência de tais serviços especializados explicaria os altos números de atendimentos registrados na cidade. Assim, o aumento dos números da violência doméstica mostram que as mulheres estão se sentindo mais amparadas para denunciar. “O fato de Bento Gonçalves apresentar altos números de ocorrências policiais relacionados à violência doméstica e familiar não significa, por si só, que somos a cidade mais violenta. É preciso lembrar que a Deam e o Revivi realizam intenso trabalho preventivo, que envolve oferecer muita informação. E a mulher empoderada, com conhecimento acerca de seus direitos, tem mais coragem de denunciar”, assinala.

Os números positivos da luta de proteção à mulher

Lei da Importunação Sexual está em vigor desde setembro (Foto: Reprodução)

Em contraponto as altas taxas de violência, o empoderamento, a luta feminina e o fortalecimento da legislação têm apresentado dados positivos. Segundo a pesquisa “Vozes na Internet: desafios e possibilidades no enfrentamento das violências contra as mulheres”, realizada pelo Instituto Avon, as menções sobre assédio cresceram quase 350% entre 2015 e 2017. O resultado demonstra que o tema está sendo discutido e levado para debate dentro dos círculos sociais.

Já em Bento Gonçalves, a Deam destaca, por exemplo, a eficiência das atividades preventivas direcionadas especificamente aos homens, como o “Grupo Reflexivo Despertar”. “Reunimos homens acusados em ocorrências de violência doméstica e familiar, e oportunizamos a eles um momento de escuta, informação e reflexão. Temos a satisfação de dizer que, dentre os homens que participam de nosso grupo, menos de 30% voltam a praticar violência doméstica”, enaltece Deise.

O fortalecimento da legislação brasileira

Além da Lei Maria Penha, considerada pela ONU como uma das três melhores legislações de proteção à mulher, e da Lei do Feminícidio, que desde 2015 qualifica a morte de mulheres motivadas por questões de gênero como crime hediondo, a legislação brasileira segue fortalecendo as medidas de combate a violência por gênero. Em setembro do ano passado, foi sancionada pelo então presidente da República em exercício, o ministro Dias Toffoli, a lei que torna crime a importunação sexual.

Para Regina essa lei vem para reforçar o respeito a mulher e ajudará a desestruturar a cultura machista onde certos abusos eram normatizados. Conta, no entanto, que por ser uma normativa nova, ainda é preciso divulgá-la melhor. “Para 2019 temos a tarefa de levar ao conhecimento destas mulheres o conteúdo da Lei e seus procedimentos”, finaliza.