Para brasileiros com antepassados vindos da Itália, as modificações nas normas podem dificultar a dupla cidadania

Que Bento Gonçalves e cidades da região fazem parte da imigração italiana, não é segredo para ninguém. Nos traços da cultura do município, no sotaque e na forma de viver de cada descendente de imigrantes, estão estampadas marcas da cultura da Itália.

Para quem tem o sangue italiano correndo nas veias, uma das opções é a conquista da dupla cidadania. Conforme a garibaldense, radicada em Verona e especialista em genealogia e cidadania italiana, Nátali Lazzari, para o processo é necessário preencher os critérios da Circular K28 de 1991, isto é, apresentar nascimento e casamento de todos os ascendentes em linha reta. “Partindo das certidões de cada um deles, voltando de geração em geração até a certidão de nascimento do seu imigrante italiano, que em geral, se você tem entre 45 e 65 anos, ele é seu bisavô”, explica.

De acordo com Nátali, o tempo de conquista depende do quanto o requerente está disposto a esperar, o que pode demorar de seis meses a 17 anos. Ela esclarece que atualmente, enquanto for possível fazer o pedido, os tempos são, pelo consulado italiano, de 10 a 15 anos; em juízo em um tribunal Italiano, de dois a quatro anos; e diretamente na Itália, residindo lá por alguns meses.

A legislação que define o processo de conquista da dupla cidadania vigora desde 1992. “É lei n. 91, sobre as novas normas sobre a cidadania. Nosso direito é oriundo do artigo 1 que diz que ‘é cidadão pelo nascimento: o filho de pai ou mãe cidadãos’. Os descendentes de Trentinos perderam o direito pela lei 379 do ano 2000, que vigorou até 2010”, frisa.

Mudanças no parlamento italiano

O parlamento italiano, entretanto, está sugerindo algumas modificações na conquista da cidadania. De acordo com a membro do Instituto Genealógico italiano e líder da Avanti Cidadania, a última mudança foi proposta pela III Comissão da Câmara dos Deputados da Itália que fez um pronunciamento, sugerindo limite geracional e ainda conhecimento cultural. “A comissão de mérito deve avaliar a oportunidade de integrar a disposição com medidas destinadas a reformar a lei 91 de 1992 com o objetivo de reconsiderar os casos de aquisição da cidadania ‘iure sanguinis’ dos oriundos no sentido de impor limites de tempo razoáveis para reconstrução da linha de transmissão de cidadania e com a introdução de requisitos que possam atestar uma ligação genuína com a Itália e seu patrimônio cultural e linguístico, conjugados a uma reciprocidade de direitos e deveres”, diz o texto.

Sobre esse último quesito, Nátali salienta que o parlamento recomenda fortemente a introdução do patrimônio de valores culturais, já que a lei de 1992 “não prevê limites geracionais à reconstrução da linha de transmissão da cidadania italiana por direito de sangue nem mesmo exige o conhecimento da língua e da cultura italiana, único caso entre os países ocidentais”, afirma a Comissão.

O texto considera que houve um aumento exponencial nos pedidos de cidadania registrada nos últimos 20 anos e, dessa forma, surge um sério problema de sustentabilidade da legislação em vigor, pois há graves subdimensionamentos da rede consular, que fica comprometida nos processos, que são demorados, de reconstrução de diferentes casos. O parlamento ainda considera que a maioria dos casos se concentra na América Latina, principalmente no Brasil e na Argentina, locais em que os ítalo-descendentes que possuem direito à cidadania é elevado.

A especialista sublinha que “o relatório do dia 22 de junho também é claro sobre a orientação ‘desencorajar práticas de aplicação de cidadania destinadas a adquirir um passaporte fruível para facilitar a entrada nos Estados Unidos ou no espaço Schengen, além de poder acessar os benefícios de natureza de saúde, fiscal ou econômica que a lei reserva aos cidadãos italianos’ e diz ser ‘necessário, também, considerar fenômenos de distorção, como o chamado turismo de cidadania, ou pedidos de reconhecimento de cidadania por via judicial, fato que determina a formação de um grande contencioso de litígios”, cita.

Memórias de Garibaldi

A empresária Rafaela Bellini Panicker é da família Bellini, de Garibaldi, mas nasceu no Rio de Janeiro e atualmente, mora em Dubai. “Meu pai é um dos irmãos Bellini, que tinha fábrica de sinos, uma joalheria e ótica na Buarque de Macedo. Meu bisavô era italiano. Então, recentemente, resolvi ir atrás da cidadania italiana, porque não moro no Brasil e o mundo ficou um pouco menor para mim. Entrei em contato com a Nátali, que foi recomendada por uma prima distante de Garibaldi, e ela tem sido espetacular, assim como a equipe. O interesse e a paixão que ela tem pela história das famílias é algo contagiante. Ela se empolga muito mais até do que eu descobrindo as coisas”, conta.

Apesar de terem muitos pertences guardados e de serem uma família bem conhecida na cidade, não havia nenhuma documentação. Era possível saber histórias e árvore genealógica, até pelo contato que Rafaela tem com parentes que moram na Itália. “Mesmo assim, não tinha nenhuma certidão de nascimento, e algumas outras coisas. A Nátali imediatamente começou a fazer a busca, passei tudo o que eu tinha, os livros, artigos, toda a história e ela foi atrás”, relata Rafaela.

Nesse processo, não eram encontrados os documentos necessários, nem mesmo da região de Pádova, que tinha aproximadamente 400 paróquias sem sistema centralizado dos registros. “Ela, a equipe e o advogado lá da Itália que trabalha em Milão, começaram uma busca, demorou um tempo, não sabíamos se conseguiríamos. Era muito frustrante, porque sabíamos tantos detalhes da família, e faltava essa certidão. Não estava esperando lidar com esse bloqueio. Tivemos que contratar um grupo de investigadores que lidam com isso mais especificamente, e dentro de pouco tempo eles acharam o registro do meu bisavô na Itália, se não me engano, na paróquia de Santa Sofia”, narra.

Quando encontraram a certidão, a empresária destaca a felicidade que sentiu, pois sem esse documento todo o trabalho e investimento teriam sido perdidos. “Foi o grande marco na pesquisa deles. Com isso, conseguimos com que o processo andasse, mesmo assim não conseguiam achar a certidão de nascimento do meu avô, que é mais próximo da nossa geração. De novo, foi frustrante não acharem. A sorte é que encontraram a de casamento e, com os dados, estão fazendo agora uma reconstrução judicial na certidão de nascimento. É nesse estado que estamos agora. Sei que as coisas estão mudando muito, então fico feliz em saber que iniciei na hora certa, que não foi tarde demais”, sustenta.

Um presente que Nátali deu para Rafaela, em uma visita, foi uma moldura com a foto do município em que nasceu. “Coloquei em um quartinho até decidir onde ia pendurar. Um dia, entrei no quarto e o cheiro daquela moldura me remeteu diretamente para a casa da minha nona, em Garibaldi. Esse presente super especial me trouxe muitas memórias”, relembra.

Para a profissional, mais importante do que a própria cidadania é descobrir a história da sua família durante o processo. “Se reconectar com suas tradições, com seu passado, com suas origens, e tudo isso tem trazido muitas informações que posso compartilhar com meus filhos e com meu marido. Só me arrependo de não ter começado antes”, conclui.

Três anos de espera

A publicitária Caroline Zonta Minozzo sublinha que o principal motivo que a impulsionou a buscar pela dupla cidadania foi a liberdade. “Poder viajar sem me preocupar com vistos e obrigações legais que hoje, com o passaporte brasileiro, demandam tempo e diversas burocracias. Além disso, vejo que buscar a cidadania também é uma forma de homenagear nossos antepassados e honrar a história da família”, acredita.

Caroline iniciou o processo em julho de 2021, e a previsão é seja finalizado até 2024. “Minha família toda é italiana, mas quem veio da Itália foi o meu trisavô, Sebastiano Zonta, para a Linha Eulália, em Bento Gonçalves”, conta.

Efeito das mudanças

A consultora no processo de cidadania italiana afirma que as mudanças propostas são péssimas, pois parece ser a cereja do bolo de uma série de ações. “Não se trata de matar a árvore com um único golpe, mas de envenená-la em pequenas doses. São sete importantes mudanças em pouco mais de três anos”, menciona.

Nátali elenca as alterações que modificam a conquista da cidadania por brasileiros:

1) Outubro de 2018: inserido obrigatoriedade de proficiência de italiano e dobrado o tempo de processo para cidadania por casamento.
2) Novembro de 2019: proposta de lei 2269, da Deputada Elisa Siragusa, pede a limitação do direito de sangue para apenas uma geração.
3) Fevereiro de 2020: pronunciamento do vice advogado-geral da Itália, Giuseppe Albenzio, na abertura do ano judiciário, colocando-se diretamente contrário aos descendentes, manifestando formalmente que enviou um pedido ao Ministério para que a cidadania italiana se adeque “àquela de outros países da União Europeia e não ao infinito” e denunciando os “brasileiros que acham um antepassado italiano e vão a Portugal entupir o sistema de saúde português”.
4) Outubro de 2020: aprovada a diminuição do número de parlamentares, de 945 para 600, portanto diminui o número de representantes dos italianos que moram no exterior. Atualmente, existe somente um brasileiro no parlamento italiano, outrora eram três, o que enfraquece nossa voz e chance de defesa.
5) Fevereiro de 2020: a orientação política da Itália muda; Mário Draghi, um ex-banqueiro, é o novo primeiro ministro italiano. Na sua posse, algo chama atenção da mídia italiana: é a primeira vez na história política da Itália que um primeiro ministro não faz nenhuma menção aos 5,3 milhões de italianos que moram no exterior.
6) Outubro de 2021: O Tribunal de Roma emite pareceres negativos baseando-se na chamada tese da “Grande Naturalização”, isto é, nega a cidadania a descendentes de imigrantes que chegaram antes do final de 1889 no Brasil, o que corresponde a pelo menos dois terços da grande comunidade de ítalo-brasileiros, aqui na Serra Gaúcha esse número é ainda maior.
7) 22 de junho de 2022: Comissão de Affari Esteri sobre pedido de modificações à lei de cidadania, parecer favorável seja quanto ao número de gerações seja ao conhecimento da língua e cultura italianas. O MAIE (Movimento Associativo Italiani all’Estero) que existe para defender a comunidade de italianos nos Exterior não comparece durante a discussão da Comissão ninguém assim como o Deputado Fabio Porta.
8) 29 de junho de 2022:
a Câmara dos Deputados italiana começa os debates em plenário sobre propostas de mudança na atual que regula a Cidadania italiana, a discussão tem foco na aprovação do iure Scholae, o iure sanguinis vai de carona. O projeto do iure Scholae pede que a cidadania seja concedida no final de um curso na Itália, para que a criança não precise aguardar até os 18 anos. Na Itália, como o princípio da cidadania na Itália é o direito de sangue, uma criança que nasce na Itália se não tiver pai ou mãe italiano não é italiana, tendo somente a cidadania dos pais. É o caso de mais de 1,5 milhões de jovens que nasceram na Itália de pais estrangeiros (africanos, indianos, albaneses…) que frequentaram a escola italiana, muitas vezes, falam somente italiano e não são cidadãos italianos, não votam, não participam de campeonatos nacionais e tem obstáculos para entrada em outros países.

A profissional frisa que diminuir o número de gerações é um modo delicado de acabar com os direitos dos ítalo-descendentes. “Ninguém quer que as pessoas fiquem aterrorizadas, mas é importante que saibam de que algo está acontecendo e a maior prova de que isso é irreversível é o último parecer do dia 22, favorável às restrições”, finaliza.

Tipos de cidadania que podem ser conquistadas por brasileiros

  1. por tempo de residência
    Na Itália, por exemplo, depois de 10 anos de residência legal, o estrangeiro pode pedir cidadania.
  2. por sangue
    O indivíduo deve herdar cidadania da família. Para a espanhola, por exemplo, para ter direito à dupla cidadania é preciso que pai ou mãe já tenha tirado a sua própria. Ou seja, o neto do cidadão espanhol é que terá direito à cidadania e, por consequência, poderá passá-la ao seu filho. Isso felizmente não acontece na Italiana onde ainda é possível “pular gerações”.
  3. por investimento
    Alguns países vendem esse status: Malta, Letônia, Chipre, Portugal são alguns dos países que promovem ativamente a concessão de cidadania. Portugal gera uma média de investimento de € 670 milhões ao ano (R$ 3,7 bilhões) com as cidadanias por investimento. É um mercado regulado que está a todo o vapor. É uma história velha como o mundo. O império romano, em 212 depois de Cristo, foi o primeiro a vender a cidadania romana.

Benefícios da cidadania

Conforme Nátali, o passaporte italiano é o segundo mais poderoso do mundo, junto com o japonês e o alemão. Ademais, a cidadania proporciona acesso à educação de altíssimo nível e de graça, facilidade para obter bolsas de estudo, acessar os melhores tratamentos de saúde do mundo, ter acesso aos Estados Unidos, Canadá e Japão sem visto, ter liberdade total para entrada em 188 países, poder morar e trabalhar em qualquer país da Europa como Irlanda, Portugal, Espanha, França e Suíça.

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