Década de cinquenta. Inverno rigoroso. Os aluninhos vão à escola, com seus pés metidos em enormes chinelos (os calçados têm que servir, no mínimo, até o fim do primário) o que dificulta a caminhada pelos atalhos e estradas de chão. Cristais de gelo promovem tombos homéricos, mas o material escolar está a salvo, dentro da “mochila” marca “Açúcar Cristal”. Alguns felizardos dirigem “veículos” de um só cavalo de força… ou mula. Por isso tudo, a meninada precisa sair de casa antes de o sol nascer. O atraso implica castigo. E ajoelhar no milho, nesta época do ano, é de lascar.

Na chegada, o ritual de sempre: deixar os chinelos sujos no lado de fora e calçar os chinelos limpos no lado de dentro. Mas nem todos têm condições financeiras para adquirir dois calçados. Um dos excluídos é o menininho do fim da fila, que faz o impossível para passar despercebido. É humilhante apresentar-se de pés descalços. Meias? Só se roubasse aquela de passar o café… E mesmo assim, faltaria o respectivo par.

Já na devida carteira, os alunos tiram o material da “mochila”. Os mais abastados exibem, com orgulho, o estojo de lata marca Johann Faber do Brasil, contendo lápis, borracha, apontador e goma arábica, enquanto esperam a ordem da “maestra” para começar a sabatina.

O garoto descalço treme que nem vara verde, um pouco pelo frio e muito pela lembrança dos exames finais do ano anterior, aplicado por uma inspetora da cidade grande. A mulher parecia tão grande que poderia esmagá-lo com o dedo. Mas ela o fez com o olhar. Um olhar espremido que juntou as sobrancelhas como se fossem duas lagartas se tocando. Um olhar que ordenava: “CA-LA-DO!”

O motivo? O menino, em desespero, queria saber o que era o tal de “bonde” que fazia parte do título da redação. Contar uma viagem que nunca tinha feito já era difícil, mas penoso mesmo era inventar uma história sem saber em que meio de transporte sua imaginação estaria viajando. Para sua surpresa, o texto lhe rendeu a aprovação. Foi o primeiro sinal de que tinha tutano.

O menininho de ontem é o professor de hoje, que, vendo um bando de alunos ligados em seus smartphones e alheios a tudo e a todos, relembra sua história de luta, cujo sucesso deveu-se a uma grande força motriz: a vontade.