Você acorda, toma um banho, um café da manhã, se arruma e sai de casa se sentindo linda e poderosa, até se deparar com o primeiro homem na rua que vai gritar pra você: “gostosa!”, “ê, lá em casa” e toda a outra “sorte” de comentários que preferimos não citar aqui por serem palavras de baixo calão. A única coisa que você desejou até o momento que abriu os olhos, era chegar ao seu destino em paz e tranquila, mas frente à tal agressão, nenhuma mulher consegue manter o equilíbrio. O nosso dia a dia é cercado de medo ao ocupar determinados espaços públicos, andar nas ruas, ou escolher o que vestir. E o assunto veio à tona em Bento Gonçalves depois que Victoria Boeira relatou o assédio sofrido durante a tarde em um dos locais mais frequentados na cidade.

O desabado da jovem rodou o Facebook por dias e chegou à redação do Semanário. Para conseguir mapear os locais onde a incidência de assédios moral/sexual são maiores na Capital do Vinho, fomos às ruas ouvir elas: as mulheres. Das 15 entrevistas, todas desabafaram que se sentem oprimidas e coagidas psicologicamente.

O assédio sexual, na maioria das vezes, envolve não apenas a opressão de gênero, mas também a opressão de classe. Ele não é apenas a conjunção carnal em si. Cantadas rejeitadas, piadinhas e comentários que colocam a vítima em situação de coação psicológica também são enquadradas como assédio.

Com apenas 21 anos, Laíze Teixeira Gomes expôs à reportagem os diversos tipos de assédio já sofridos. “Homens que passam pela rua ‘se esfregando’ em mim, ou quando não posso mais usar saia no trabalho e até mesmo quando estou andando na rua e um homem desacelera o carro só pra ficar me olhando”, contou.
A jovem acredita que “somos vítimas da violência verbal cotidianamente, somos oprimidas por velhos costumes que seguem na sociedade. Temos que desconstruir o machismo”, garante.

Já Victoria, a menina que teve a situação exposta nas redes sociais, relata que depois do ocorrido, não sabe mais como irá fazer para frequentar o local. “Passo seguidamente pelas redondezas do Cidade Alta (lugar onde aconteceu o fato), mas agora o único sentimento que consigo sentir é nojo e vergonha”, lamenta.

“Vivemos em uma sociedade masculina”

A organização da sociedade se dá de forma patriarcal e, portanto, é estruturada de forma masculina na visão do professor e sociólogo Guilherme Howes. Ele legitima social e culturalmente os abusos contra tudo não está à altura deste estatuto na sociedade. “Nossa cultura é machista e misógina que vê todo corpo que não é branco, hétero e masculino, como objeto de dominação. Naturaliza-se a violência contra as elas sob a compreensão e o argumento de que são elas as responsáveis e culpadas pelas violências a que são submetidas”, explica.

Howes acredita que a omissão e o silenciamento das mulheres nesses casos se deve à vergonha e à culpa. “Ambos tem uma certa raiz religiosa cristã, que é preponderante na nossa sociedade deste tempo. Quando se sente vítima, e portanto deveria levar à público a violência que está sofrendo, as mulheres sentem culpa e vergonha da situação a que estão submetidas. Isso é decisivo para que silenciem-se (na maioria das vezes) diante de situações como essa”, observa o sociólogo.

O professor enfatiza que a impunidade é além de um fator, uma consequência e sintoma do que causa a violência. Ele lembra que anterior a todos estes fenômenos, há as formas sociais e culturais que perpetuam a dominação. “A educação formal é machista, produz e reproduz a dominação masculina; a religião dominante é misógina, basta ver seus rituais, liturgias e símbolos; a mídia, da mesma forma, confirma e reforça os padrões masculinos e opressores da dominação… a saída para tudo isso é, acredito, ampliar os canais de debates e conscientização das diversas formas de violência. Trazer esses casos para as discussões públicas”, esclarece Howes.

“Os caminhos já estão sendo construídos”

Paula Cervelin Grassi é professora de história e mestra em educação. Como historiadora ela enfatiza que a violência contra a mulher foi em grande parte da história invisibilizada e tratada como um problema privado. “Naturaliza-se a situação, pois a sociedade carrega a herança histórica de compreender uma violência contra a mulher, seja física ou psicológica como uma um mero desentendimento entre casais, ou um problema privado. Naturaliza-se pois a sociedade ao determinar e esperar determinadas condutas femininas, justifica que a vítima motivou ou “mereceu” a agressão. Por exemplo, como em casos de estupros, em que o problema não está no agressor, mas sim na vítima que usou a saia curta e assim motivou a agressão. A vítima torna-se culpada na maioria dos casos”, garante.

Quando o assunto são as leis, Paula enfatiza a necessidade de fortalecer a Lei Maria da Penha para que cumpra o papel de proteção à mulher. “Além disso, a Justiça Brasileira não compreendeu ainda a gravidade da violência contra nós todas. Assim, é necessário também, por meio da educação, nas formações profissionais, refletir a questão desde cedo, para não reproduzirmos injustiças”, finaliza.