A pequena Manuella, de oito anos, junto aos pais, aprende diariamente a conviver com Mielomeningocele

Receber o parecer de que seu bebê pode nascer com uma malformação congênita na coluna vertebral é algo um tanto quanto assustador. Pais de primeira viagem, a manicure Fabiane Godinho e o garçom Lucas Sota da Silva, de 32 e 34 anos, respectivamente, precisaram aprender a lidar com a Mielomeningocele (ou Espinha Bífida) diagnosticada na ecografia da filha Manuella Godinho Sota da Silva, que hoje está com oito anos.

Ela conta que a filha veio de forma planejada. “Queríamos muito ter um bebê. Até os oito meses de gestação, tive uma gravidez bem tranquila. Nas ecografias nunca apareceu nada de anormal. Até que recebemos o diagnóstico que ela tinha “Mielo”. Fui atrás de informações sobre a doença e o nosso mundo caiu. Tudo era incerto. Procuramos, então, um médico especializado para saber o que podíamos fazer”, revela a mãe.

Ao nascer, Manuella foi encaminhada à sala de cirurgia a fim de corrigir a Mielomeningocele. Fabiane não pode pegar a filha no colo e nem amamentar. No entanto, a doença traz consigo outras complicações, como a hidrocefalia (acúmulo de líquido nas cavidades internas do cérebro), que pode gerar sequelas irreversíveis. Com apenas dez dias de vida, o médico decidiu que faria uma cirurgia para colocação de uma válvula. “Foi mais um choque. Ela nem tinha se recuperado de uma cirurgia, já teve de fazer outra”, explica.

Entre UTI e quarto foram mais 30 dias. Voltar para casa e aprender a fazer curativos era algo intimidante. “Foi um desafio. Éramos novos no assunto maternidade, mas não víamos a hora de chegar em casa. Mas, “bola pra frente””, relata a mãe. Nesse meio tempo, Manuella começou a vomitar muito. Bastante preocupados, os pais a levaram ao médico. O resultado foi outra cirurgia para remoção de uma hérnia no diafragma, aos quatro meses de vida. “Os órgãos dela estão fora do lugar, o intestino estava fazendo pressão no estômago e no pulmão. Foi uma das cirurgias mais complicadas”, conta Fabiane.

Ela comenta que parou de trabalhar para se dedicar à filha, quando completou seis meses de vida. Os pais buscaram um tratamento na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), em Porto Alegre, onde, por duas vezes na semana, frequentaram durante três anos. A família usufruía do auxílio de transporte da Prefeitura e do benefício do Governo para compra de medicamentos. “Na Associação ela fazia hidroginástica, tinha um atendimento bem completo, ganhou muita coisa e começou a engatinhar. Porém, após três anos, como não tinha mais como progredir no tratamento, ela ganhou alta, e, também, eles não estavam mais atendendo pacientes de fora. A médica da AACD disse para mantermos com o que tínhamos aprendido”, lembra. “Tentamos, mas a Manu começou a reclamar de dores, pois estava com luxação nos quadris, nos joelhos, nos pés e uma hiperlordose na coluna, o que dificultava para que ficasse em pé”, diz a mãe.

Manuella exibe sua boneca que também convive dia a dia com a cadeira de rodas

O passo seguinte foi tratá-la na UCS, em Caxias do Sul, o que durou um ano, pois o resultado não estava sendo eficaz. “Devido à renda do meu marido, perdemos o incentivo Federal. Teríamos que entrar com pedido judicial, no caso. Mas decidimos procurar por serviços em Bento”, expõe. Atualmente, Manuella faz natação em parceria com uma academia local, que não cobra pelas aulas. “Eu gosto muito de nadar”, comenta a pequena.

Contudo, a escola se tornaria um outro fator adverso, pois precisaria de um monitor que acompanhasse a menina. “Ela ainda é uma criança, não tem noção de perigo. Então, precisei lutar na Justiça e, por meio de indenização e de tanto batalhar, conseguimos”, frisa Fabiane. Na Escola Estadual Amaro Bittencourt, onde estuda, ela recebe todo apoio dos amigos, que mantêm o coleguismo desde a primeira série.

As lutas diárias não impediram a família de superar cada novo desafio. Embora houvesse dúvidas, Fabiane e Lucas decidiram ter outro filho. Mariana tem um ano e meio e se tornou a companheira para brincar com a Manu. “Elas são bem unidas. Mesmo muito pequena, a Mariana tenta, da sua forma, ajudar a mais velha. Ter outro filho foi a melhor escolha que fiz”, ressalta a mãe.

Durante os oito anos, foram várias intervenções, muitas agulhas e tratamentos, entretanto desistir nunca foi opção. “Tirei forças de onde não tinha pela minha filha. Na última cirurgia, ela disse que não aguentava mais, mas trabalhamos muito em família. Meu marido é um ótimo pai e tem me dado todo suporte”.

A independência da menina é uma das maiores conquistas observadas pelos pais. “Queremos prepará-la para o mundo e começamos em casa. Ela seca a louça, guarda as coisas do café, prepara a mochila, toma banho sozinha. Quando ela consegue fazer as coisas, dá um prazer enorme. Digo para ela: tentou dez vezes? Se tentou e não conseguiu, tenta outra hora, mas não desiste”, brinca. “Eu cuido também do peixe e do hamster”, interfere Manuella.

“Quero ser maquiadora”, vislumbra a menina

Nem todas as pessoas reagem da mesma maneira ao descobrir uma doença, elas transitam pelas fases da negação e depois da aceitação. “Toda situação é adaptável. As que passamos com a nossa filha, desde quando soubemos do problema, achávamos que não teria solução. Aí, quando chegava na fase de estar cara a cara com a questão, a solução surgia. Quando se tem ao lado alguém que luta e que apoia, como médicos e família, é muito mais fácil. Hoje vemos que nada é impossível”, comemora a mãe.

Rede de profissionais

Fabiane precisou aprender o procedimento de sondagem, devido à bexiga neurogênica decorrente da Mielomeningocele. “Hoje o que mais incomoda, quando se trata de consequências da doença, é a bexiga. Estamos vendo para fazer uma cirurgia para que ela mesma possa se sondar, enquanto isso ela fica com antibióticos, principalmente via endovenosa”, afirma.

A nefrologista pediátrica Alessandra Ruzzarin Blanco, é uma das profissionais que cuida da Manuella. Ela explica que o tratamento varia conforme o tipo e a severidade do quadro clínico. “A principal causa de bexiga neurogênica na infância é a displasia da medula, que tem na Meningocele e na Mielomeningocele, as anomalias mais frequentes. O distúrbio é quando existe disfunção da bexiga e esfíncter nos portadores de doenças do sistema nervoso central e periférico. O curso natural quase sempre envolve alterações na função de armazenamento e ou na fase de esvaziamento da bexiga, levando a resíduo miccional aumentado. Nesses últimos casos, está indicada a sondagem vesical a cada quatro ou seis horas todos os dias. Com o avanço da idade e da doença, na maioria dos casos está indicada uma cirurgia, onde é feito um esfíncter artificial e, com isso, a pessoa fica continente e tem mais facilidade para as sondagens”, aponta.

Além de Alessandra, a menina é atendida por um neurocirurgião e fisioterapeutas.

Sobre Mielomeningocele

É uma malformação congênita do Sistema Nervoso Central que, normalmente, se desenvolve no primeiro mês de gestação. Na espinha bífida existe um defeito de fechamento das estruturas que formarão o dorso do embrião e que poderá afetar não somente as vértebras, mas também a medula espinhal, meninges e até mesmo o encéfalo. Esses problemas são geralmente denominados defeitos do tubo neural. Este, por sua vez, é o início do sistema nervoso do embrião.

A incidência global varia de 0,1 a 10 casos para cada mil nascidos vivos. A incidência mundial da mielomeningocele tem associação com regiões de baixo desenvolvimento sócio-econômico.

O tratamento, além da cirurgia, inclui o seguimento e suporte clínico para toda a vida, pois a criança pode ter desde uma vida completamente normal, quando a mielomeningocele é bem baixa e acomete poucas raízes nervosas, ou desenvolver diversas complicações durante a vida, como pé torto, medula presa, dificuldade de marcha, escolioses graves, hidrocefalia, distúrbios psicológicos e problemas urológicos, que podem variar desde infecções urinárias até a perda de função renal.

Fotos: Franciele Zanon