No dia 29 de novembro, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal descriminalizou o aborto antes do terceiro mês de gestação em um julgamento de médicos e funcionários de uma clínica clandestina, em Duque de Caxias (Rio de Janeiro), que estavam presos pelo que até então era considerado crime. Apesar de a decisão ser válida apenas para esse caso específico (em que os réus foram soltos), a notícia gerou uma grande polêmica e confusão, que está rendendo discussões nas mídias sociais. Mas afinal, quando inicia a vida? Até onde pode ir a decisão de uma mulher de tirar a vida do próprio filho? Para quais casos a decisão é válida? Diversos questionamentos permeiam o dia a dia de médicos, feministas e de pessoas da área da saúde.

O Brasil registra uma média de quatro mortes por dia de mulheres que buscam socorro nos hospitais por complicações do aborto. Até setembro deste ano, foram 1.215 casos. Os registros de 2015 têm padrão semelhante: de janeiro a dezembro, houve 1.664 relatos de mulheres que morreram depois de dar entrada em hospitais por complicações relacionadas à interrupção da gravidez.
A médica ginecologista e obstetra Maria Auxiliadora Garcia Restelatto garante que a decisão de tirar a vida de alguém só pode ser feita perante anomalias ou quando há riscos para a mãe. “Estupro, quando o feto é anencéfalo ou quando não há a chance do bebê e a mãe sobreviverem após o parto, nós médicos, temos de tomar a decisão para que ocorra o melhor para ambos. Mas fora isso, nós existimos para salvar vidas e não tirá-las”, comenta.

Um parecer elaborado pelos conselhos federais de Medicina e Psicologia, entre outras entidades, propõe a legalização do aborto no Brasil para gestações até a 12ª semana. Os profissionais que elaboraram o documento entendem que até esse período o embrião não tem sistema nervoso e, por isso, não estabelece relações humanas e que é direito da mulher interromper a gravidez. Entretanto, para Maria Auxiliadora a vida existe a partir do momento em que o óvulo é fecundado. “Há diversas teorias sobre o começo da vida, mas sabe-se, por exemplo, que com quatro semanas o coração do bebê já tem uma formação e começa a bater. Com seis semanas já é possível ver o embrião com brotos de braços e pernas”, salienta a médica.

Segundo a ginecologista, se há vida e ela está indo bem, não há motivos para tirá-la. “Em 12 semanas o bebê já é considerado um feto, então é um pouco difícil de compreender o porque da decisão ter sido tomada a partir dessa data. Sendo que o feto já se mexe, já possui tubo neural formado e já tem o cérebro em formação quase completo. É um ser vivo se desenvolvendo e que só precisa que a mãe o deixe viver dentro dela até o fechamento dos nove meses”, explica.

“O aborto é um problema de saúde pública no Brasil”

Dentro do movimento feminista, o aborto é visto como uma pauta importante por estar vinculado a um ponto fundamental: o poder das mulheres sobre o seu prórpio corpo e destino. A historiadora e feminista Nikelen Witter garante que o assunto exige diversos entendimentos e a decisão tomada pelo STF não muda a legislação, apenas abre um precedente. “É necessário não confundir o apoio a descriminalização, isto é, deixar de colocar na cadeia mulheres e médicos que optam ou auxiliam o aborto; com o apoio a uma liberação irrestrita do aborto. A decisão de ser ou não ser mãe é uma decisão fundamental, não apenas para as mulheres, como para as crianças que elas geram”, observa a feminista.

Segundo Nikelen, aos homens sempre foi mais fácil negar a paternidade, já para as mulheres a maternidade é uma obrigação. “A maioria dos grupos feministas no Brasil pede pela descriminalização do aborto e defende, conjuntamente, uma ação educativa no sentido de ensinar a prevenir para não engravidar, ter orientação para optar com clareza entre o aborto e a gestação, e atendimento público para não morrer no processo, até porque não existem formas anti-concepcionais 100% seguras”, garante a historiadora.

Para os grupos feministas a população de um modo geral acredita que a descriminalização do aborto levará a uma forma indiscriminada do uso desse expediente como anti-concepcional. “Eu, pessoalmente, discordo, basta ver o perfil das mulheres que aborta, a maioria já passou da adolescência, é mãe de várias crianças e se encontra em dificuldades financeiras de manter mais um filho, mas, no Brasil, esse é um problema de saúde pública”, relata.

Nikelen salienta que o que as feministas fazem de um modo geral não interfere em ser a favor ou contra a questão pessoal de cada uma. “Essa decisão é de cada mulher para consigo mesma, mas lutamos para que não criminalizem mulheres pobres que morrem todos os dias, indiferentemente de quererem mais um filho, mas não poderem se responsabilizar por mais crianças”, expõe.

A dor silenciosa de quem aborta

Sete milhões de mulheres são internadas por ano por complicações de saúde provocadas por abortos clandestinos. Também todos os anos 22 mil morrem pelo mesmo motivo. O dado é de um estudo feito em 2012 em mais de 26 países em desenvolvimento, dentre eles o Brasil, e publicado em agosto de 2015 no Journal of Obstetrics & Gynaecology.

O Brasil registra uma média de quatro mortes por dia de mulheres que buscam socorro nos hospitais por complicações do aborto. Até setembro, foram 1.215 casos. Os registros de 2015 têm padrão semelhante: de janeiro a dezembro, houve 1.664 relatos de mulheres que morreram depois de dar entrada em hospitais por complicações relacionadas à interrupção da gravidez. Pelas estatísticas oficiais, haveria uma morte de mulher por aborto a cada dois dias. “Não podemos agir naturalmente perante a números tão alarmantes”, comenta Maria Auxiliadora.

Nikelen, ressalta que o aborto continua acontecendo independentemente das convicções pessoais de cada pessoa e questiona: “queremos que as mulheres continuem morrendo por não encontrarem apoio, seja do estado ou da sociedade?”. A feminista aponta que já foi contra o fato de matar um ser humano ainda dentro do útero, mas que depois de lutar imensamente para ter um filho e ser uma mãe feliz com uma criança feliz, pensa que sujeitar qualquer criança a vir a um mundo que não a quer e vai maltratá-la, não há necessidade.

A ginecologista Maria Auxiliadora reafirma que a discussão maior tem que estar na morte das diversas mulheres que praticam aborto clandestino e que, mesmo que seja contra a ética médica, é necessário que algo seja feito. “Em momento algum estou concordando que as mulheres devem abortar sem que haja aquelas circunstâncias já decididas pelo STF, mas uma fiscalização maior deve acontecer”, adverte.

Segundo os dados informados na pesquisa feita em 2012 e informada pelo Journal of Obstetrics & Gynaecology, não são somente mulheres pobres e/ou com condições financeiras mais baixas que praticam o ato clandestinamente. “Nas convicções, cada uma decide à sua maneira. A decisão de abortar, eu creio está entre as mais difíceis e dolorosas de se tomar. A mulher que decide por isso o faz por não ver qualquer outra alternativa. Aí entramos no caso a caso. As mulheres que têm condições também continuarão a fazer abortos por diversos motivos e sobreviverão porque podem pagar”, frisa a feminista. Entretanto ela não acha certo que essas mesmas mulheres sejam criminalizadas por conta de tal ato.

O que preocupa o grupo de ativistas são as mulheres mais carentes que geralmente morrem nas salas de “cirurgia”. “Elas não têm dinheiro para pagar uma internação caso tenha complicações. Portanto, a mortalidade é maior e mais premente que a questão de quem pode ter e não tem porque não quer. Já o movimento feminista, irá novamente levantar a bandeira do direito ao próprio corpo”, finaliza Nikelen.

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