Possivelmente presente desde a pré-história e manifestada em todas as civilizações que se tem conhecimento, a música é a mais popular entre as artes. Muito além da sua capacidade de expressar sentimentos e retratar a sociedade, devido a sua pluralidade e linguagem, ela emociona e conversa com toda e qualquer pessoa, ao ponto de se tornar praticamente impossível dissociá-la da vida humana moderna. É para homenagear o trabalho de quem torna isso realidade, que o dia 15 de janeiro, data que marca a fundação da Sociedade de Autores e Compositores do México (SACM), passou a ser comemorado como o Dia Mundial do Compositor.
Como uma forma de marcar a passagem desta data, ao longo da última semana, o Semanário conversou com alguns entre as dezenas e dezenas de compositores que escreveram seu nome nas páginas da música bento-gonçalvense. De bandas que embalaram a juventude local na década de 1990 aos artistas do momento, de histórias de superação a laços familiares, englobando o maior número de gêneros musicais, contamos por meio dos relatos e vivências dos próprios artistas, as histórias por trás das letras.
Cassiano Farina e uma família de músicos
Uma antiga pasta preta “igual de advogado”, conforme ilustra o músico Cassiano Farina, 38 anos, fazia as vezes de um baú para ele e seu irmão, Diogo, guardando e protegendo como tesouro, as primeiras composições escritas em parceria pelos dois na pré-adolescência. Até então, apenas dois garotos apaixonados por Beatles e Legião Urbana, os irmãos escreviam suas letras inspirados por seus ídolos do rock, enquanto, simultaneamente, o mais velho da dupla, Diogo, que fazia aulas de música, ensinava o mais jovem a compor e tocar suas primeiras notas. Embora nenhuma dessas composições adolescentes tenha sido gravada oficialmente, essas lembranças rememoradas por Cassiano são a pedra fundamental de uma grande estrada no mundo da música.
Embora a inspiração maior de Farina sempre foi o irmão Diogo, suas raízes musicais vêm de antes . Conforme conta, seu pai, Geraldo, além de professor de música, também foi maestro do coral do Hospital Tachinni e do coral do Vale dos Vinhedos, entre outros. “Por influência dele, toda família acabou se envolvendo em música. De quatro irmãos, temos três músicos profissionais. E o outro, o mais velho, apesar de ter seguido carreira em outro ramo, também saber tocar e já teve até banda”, assinala.
Influenciado pelas composições da juventude, o caminho que Farina seguiria se consolidou fora da música folclórica e popular brasileira, regidas pelo pai. O músico que sonhavam em escrever como Renato Russo, assinaria mais tarde, junto ao inseparável irmão Diogo, seu nome em diferentes projetos de sucesso, como o The Beatles no Acordeon, Blackbirds e o Farina Brothers, na qual também participa a irmã, Camila.
Conforme conta, foi em 1997, com a criação da Blackbirds, que a música, brincadeira de infância, se tornaria sua profissão. Na banda, além de auxiliar Jus Nino, vocalista e compositor da maioria das letras, na composição de um par de músicas, se dedicou a criar harmonia e arranjos. Nos dois trabalhos mais recentes da banda, atuou, ainda, como produtor.
Passados 19 anos do primeiro disco, e após rodar o Brasil e o mundo com suas bandas, Farina não esquece, no entanto, quando ouviu pela primeira vez, uma das suas dezenas de composições tocar na rádio. “É inesquecível. Lembrei na hora de onde tudo isso começou. O violão, a pastinha de folhas soltas, até que isso realmente virou música e que as pessoas passaram a pedir na programação. É uma emoção sem tamanho”, exclama.
Edgar Dree e seus testemunhos
Um agradecimento. É dessa forma que Edgar Mattos, o Dree, 25 anos, define a primeira letra que escreveu. Sem pretensões de se tornar um rapper, a faixa “Agradeço pela mudança”, escrita em 2016, era a forma que ele encontrou de marcar seu reconhecimento à transformação promovida pela fé em sua vida.
Após inúmeras brigas com o pai, Dree havia se afastado da família e, em um momento conturbado, se envolveu com o crime, ao passo que passava por um período de depressão. Foi então que a igreja, em um primeiro momento, e o rap, logo depois, passaram a fazer parte de seu dia a dia, promovendo a transformação que mais tarde ele traduziria em suas letras. “Uma senhora me convidou para um culto. Nunca tinha entrado em uma igreja antes. Lá conheci um rapaz chamado William que canta rap gospel e me convidou para um evento em que ele ia se apresentar. Aí tive meu primeiro contato com esse tipo de música”, conta.
Embora não tenha parentes músicos, lembra que a música sempre fez parte da sua história. Na infância, o rádio sempre estava ligado, enquanto seu pai trabalhava e a mãe cuidava da casa. Apesar de eclético, na adolescência passou a se reconhecer no rap. Fã de grandes nomes do gênero, como Chris Brown, Racionais MC’s e Sabotage, conta que nunca havia sonhado em ser rapper. Apesar de ser um leitor assíduo, jamais havia arriscado escrever. “Sempre gostei de ler. Desde livro a rótulo de produto, estou sempre lendo. Mas foi só em 2016 que resolvi tentar escrever e decidi colocar para fora meus sentimentos em relação a Deus. Resolvi que esse era um jeito de alcançar outros iguais a mim, pois é mais fácil atingir um jovem pelo rap, do que com um pastor de terno”, comenta.
Desde então, nunca mais deixou de anotar nenhum pensamento. Seja na rua, no banho, ou no trabalho, está sempre preenchendo o bloco de notas do celular com novas rimas. “Depois que anoto minhas ideias, umas vão ficando e outros encaixam em letras já começadas. Meu celular está repleto de composições pela metade e outras prontas, esperando uma base que combine”, conta.
Até o momento já foram nove músicas gravadas, a última, “Dente-de- leão”, com clipe lançado nesta segunda-feira, dia 20 de janeiro. Embora tenha ido além do gospel, gravando também o que ele denomina “love songs”, a fé segue como seu principal tema. “Não foi o rap que me mudou, mas o culto. Foi com as pregações que resolvi mudar. Fui convencido por algo maior. Foi um chamado de Deus para eu sair do buraco onde estava, para uma nova vida. Então comecei a compor, falando do criador, mas também de amor”, destaca.
Embora sem pretensões de se tornar um artista ou mesmo de ser ouvido, Dree não esquece o dia em que ouviu sua música na rádio pela primeira vez. “A proposta não era essa, eu só queria gravar um videoclipe, e lancei-o no Facebook. Foi então que uma mulher me chamou e pediu se poderia colocar a música na programação da rádio. Foi tocada no mesmo dia em que a enviei. Fiquei muito feliz. Não tem outro modo de expressar o sentimento. A palavra é felicidade mesmo”, concluí.
Rodolfo Costa do piano ao violão
Como se fosse peça comum de mobiliário, tal qual o sofá ou a televisão, o imponente piano sempre esteve presente na infância de Rodolfo Costa, 39 anos. Seja em seu próprio lar, onde a mãe, musicista formada, dedilhava de clássicos eruditos à música popular brasileira; ou na casa da avó paterna, que cantava em corais; ou ainda, em sua tia que também toca piano, o contato do menino com o som das teclas era inevitável. Da mesma forma, como não é de se estranhar, inevitável também seria seu aprendizado e gosto pela música.
Apesar disso, seu companheiro inesperável seria muito menor e teria cordas no lugar de teclas. Impulsionado pelo rock, na época em que o gênero era quase unânime nas rádios, passou a se dedicar ao violão, reproduzindo, inicialmente, os sucessos de bandas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso e Nenhum de Nós. Além do gênero, nas aulas do violão aprenderia também bossa nova, e por influência de seu professor de violão, exímio músico nativista, também seria introduzido ao tradicionalismo.
Essa mescla seria reproduzida com o tempo em mais de 40 composições de diferentes vertentes. As primeiras delas remetem ao terceiro ano do ensino médio. “No começo, eu falava de amores não correspondidos, coisa bem adolescente. Nunca mostrei para ninguém, mas ainda guardo essas letras”, destaca. Desde então, tal como o violão, a composição se tornou uma prática. “Já fiz música encomendada por amigo, outras para festivais, onde me era passado o tema e eu criava, e até uma para registrar o nascimento de meu primeiro filho. Algo que quando comecei a escrever, jamais imaginaria que um dia eu fosse fazer”, destaca.
Hoje no ramo da publicidade, Costa vê em suas músicas, o registro de várias etapas de sua vida e dos caminhos percorridos neste trajeto. Cada letra é, ao mesmo tempo, a lembrança de quem era e de como pensava, e de quem isso o levou a se tornar. “São histórias de coisas que vivenciei, perspectivas do mundo que me cercava. Tem música com significado que nunca vou revelar para ninguém, que só tem sentido para mim, e outras onde falei coisas que hoje não falaria, mas nem por isso deixo de gostar delas, são retratos da vida que eu tinha”, explana.
Mesmo sem escrever há cinco anos, além de dezenas de composições, guarda consigo memórias que só a música é capaz de proporcionar. “Nunca tive a sensação de ter um sucesso, mas já toquei na rádio e já ouvi músicos tocando minhas músicas. Uma vez, em um show de uma banda que gosto, uma menina que assistia se virou e disse que seria legal eles tocarem ‘Ana Clara’, uma das minhas canções. Eu não a conhecia, nunca a tinha visto, então fiquei me perguntando como ela sabia quem eu era. Nesses momentos é como se a gente estivesse levitando. Esse reconhecimento nos tira os pés do chão”, conta.
Wladi Costa e suas histórias de palco
Embora não tenha desfilado, a festa de escolha de reis e rainhas do ensino médio mudaria a vida de Wladimir Costa, o Wladi, 29 anos, para sempre. Convidado a se apresentar no evento, junto a “Ratos de Praia”, banda montada com colegas de turma, em meio à setlist repleta de covers preparada para o show, o garoto resolveu incluir uma música de autoria própria. Mesmo que a recepção do público tenha sido positiva durante toda a apresentação, o êxtase estava mesmo reservado para “Quer ficar comigo?”. Do primeiro ao último verso, emocionado, o garoto assistiu o público entoando sua composição, que disponibilizada no myspace, tinha se popularizado na escola sem o seu conhecimento. Como ele revela, esse foi o momento no qual teve certeza que a música seria o que ele faria pelo resto da vida.
Apesar de ter apenas 14 anos na época em que subiu ao palco com a Ratos de Praia, essa não foi sua primeira apresentação em público. Dez anos mais novo que Rodolfo, o garoto que, havia começado a aprender música muito cedo por influência da mãe, foi convidado para fazer uma ponta na apresentação da banda do irmão, na festa de formatura do “terceirão”. Sem se intimidar, aos oito anos, cantou o hit “Tudo que ele gosta de escutar”, do Charlie Brown Jr, para cerca 500 pessoas.
Em uma história musical onde tudo para ser encaixar, a música escolhida para a apresentação na formatura de Rodolfo, o levaria a conhecer o reggae, estilo que ficaria marcado, não como o único, mas como o de maior influência em suas mais de 70 composições. Após pesquisar mais a fundo as influências e músicas do Chorão, do Charlie Brown Jr, o gênero jamaicano se tornaria sua preferência e o ponto de partida para sua carreira de compositor. “Além do Charlie Brown, que tinha um reggae bem popular na época, minha mãe, sem querer me fez me aprofundar no gênero. Ela ouvia muito de Caetano Veloso, Chico Buarque, entre outros. Foi aí que descobri que o Gilberto Gil tinha um disco inteiro com regravações do Bob Marley, o ‘Caia na Gandaia’. Embora escutasse música desde o berço, foi aí que encontrei o gênero com que me identificaria mais”, destaca.
Com dois cds gravados e um prestes a ser lançado, conta que suas canções não se limitam a nenhum gênero. As letras, do mesmo modo, também não seguem nenhum temática. “O terceiro cd, por exemplo, tem músicas com violão, violino e violoncelo, beirando musica clássica. Embora me identifique com o reggae, não me prendo em estilo. Pego o violão e vou deixando a composição e a harmonia fluírem. Se vai se tornar reggae, beleza, caso não, ok também. Já fiz música sobre encomenda de amigo querendo homenagear a namorada, já fiz para o filho do Rodolfo, para meu pai, minha mãe e para minha esposa. E claro, tem muita letra resultado de uma angústia ou amor pessoal”, explana.
Hoje, 20 anos após subir ao palco pela primeira vez, Wladi coleciona momentos marcantes proporcionados pela música. Fã de Chimarrutz desde a adolescência, em um show que fez em Porto Alegre, o músico vislumbrou, na plateia, uma pessoa bastante especial. “A Paty Portella, vocalista da banda, estava no bar naquele dia. Eu estava cantando uma música e no refrão, que era mais repetido, ela começou a cantar junto. Quando terminei, a Paty gritou ‘vou gravar essa música um dia!”. Isso nunca chegou a acontecer, mas foi impactante ouvir algo assim de uma pessoa que tanto admiro e em quem me inspiro”, lembra.
O momento mais marcante, no entanto, é mais recente. Uma noite, recebeu a ligação do esposo de uma amiga que sofria de depressão, pedindo para que ele rezasse por ela. A amiga havia consumido uma overdose de comprimidos. Em meio à reza, nasceram alguns versos. Na hora, Wladi pegou o gravador e encaminhou um áudio cantando para a amiga. “Ela me ligou para dizer que a música fez muito bem para ela e que eu precisava gravá-la, pois tinha muita gente sofrendo de depressão. Lancei o clipe em dezembro de 2019, e recebi muitas mensagens de pessoas dizendo como a letra as tinha tocado. Isso foi o mais emocionante que passei”, conclui.
Alan Merigo e o rock autoral
Mais de 4 mil pessoas se apinhavam em frente ao palco do clube Ipiranga, enquanto uma fila com mais outras 3 mil se estendia da porta para fora. Em outro momento, a Avenida Planalto se encontrava completamente tomada por mais de 10 mil bento-gonçalvenses. Esse é o cenário revivido por Alan Merigo, 41 anos, ao relembrar a década de 1990, quando ele e seus companheiros formavam a Sociedade Anônima, uma das bandas mais populares da região, em uma época de efervescência do rock autoral.
Residente de Florianópolis desde 2016, o hoje executivo comercial da indústria financeira não esconde a animação em falar dos tempos de Sociedade Anônima, bem como sua relação com a música, a qual remete aos primeiros anos da infância. “Comecei estudando piano clássico no colégio, aos oito anos. Foram cinco anos de Bach, Beethoven, Mozart, mas com a rebeldia da adolescência passei a ouvir rock e troquei as teclas pela guitarra. Aprendi de forma autodidata”, relembra.
Em paralelo ao aprendizado de guitarra, Merigo também começou a escrever suas primeiras músicas, mas as composições só passariam a ganhar corpo e ser levadas a sério com o lançamento do primeiro disco da Sociedade Anônima. Com influências musicais que iam do rock gaúcho a Van Halen, e versos irreverentes que refletiam o vigor da juventude, as letras eram escritas, majoritariamente, pelo vocalista, Jonas Frizzo, enquanto Merigo se dedicava a criação musical. “A primeira composição que fizemos em grupo foi para a Sociedade Anônima. Embora o cover tenha nos ajudado a entrar no mercado, queríamos uma banda com foco no trabalho autoral. Sabíamos que só replicar seria insustentável. Sem fazer algo próprio, o tempo e a história passam e não deixamos nenhum legado”, pontua.
Mais maduro, já nos anos 2000, Merigo daria vida a um novo projeto, a banda Eletroacústico S/A, onde também compôs. “A SA foi o grande projeto que nos fez percorrer todo o sul do Brasil, além de São Paulo. A Eletroacústico foi mais focada no estado, tocando nas rádios e eventos locais. De composição totalmente minha, não vou chamar de hit para não soar pretensioso, mas uma das que tocou mais na rádio foi ‘Tá tudo bem’”, lembra. Sobre o processo de criação, destaca que não há um caminho específico. “Já aconteceu de diversas formas. Às vezes, sento com o violão na mão e em cinco minutos escrevo letra e melodia. É algo que está em nosso inconsciente nesse momento e salta pronto. Em outras, primeiro compus toda parte melódica e instrumental, bateria, baixo, teclado, violação, guitarra base e solo para depois colocar letra”, pontua.
Embora não trabalhe mais como músico, o amor pela arte segue inabalável. Merigo mantém um estúdio em casa e lembra, com orgulho, tudo que a música lhe trouxe. “Daqui dez ou 20 anos minhas palavras vão seguir gravadas, nossas criações ficam para sempre”, destaca. Falando em para sempre, ele adianta que os vislumbres emocionantes das casas de show lotadas dos anos 1990 podem vir a ser rememorados ao vivo.
Após se reunir com os ex-integrantes da Sociedade Anônima no fim do ano passado e, evidentemente, ensaiarem para relembrar os velhos tempos, Merigo sublinha a possibilidade de um reencontro no palco. “Não creio que vamos voltar à estrada, mas, embora seja arriscado divulgar, queremos sim fazer uma apresentação e registrar em DVD. Se sair alfo, será em Bento, pois foi onde tudo começou. Depois disso, o futuro a Deus pertence”, projeta.