Governo tem protocolo específico para o pós-morte de vítimas do coronavírus. Funerárias e famílias também precisam se adaptar

Desde o início da pandemia, muitas mudanças ocorreram no cotidiano de todos. Os cuidados para evitar a transmissão da Covid-19, atualmente, estão em todos os momentos da vida, inclusive no luto. O Ministério da Saúde, em 25 de março, publicou um protocolo com as recomendações para o manejo de corpos no contexto do coronavírus.

O objetivo do “manual”, de acordo com a pasta, é manter os profissionais da saúde protegidos da exposição a sangue e fluidos corporais infectados, objetos ou outras superfícies contaminadas. Entre as recomendações do governo, é sugerido que em casos suspeitos ou confirmados da doença, devem estar presentes no quarto ou qualquer outra área apenas os profissionais estritamente necessários, todos fazendo uso dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs): gorro; óculos de proteção ou protetor facial; avental impermeável de manga comprida; máscara cirúrgica; luvas nitrílicas e botas impermeáveis.

O presidente da Associação Médica de Bento Gonçalves, Fernando Tormen, explica que “existe um protocolo de paramentação rigoroso que deve ser seguido por todos os profissionais”. O médico elucida como funcionam os procedimentos durante o período de trabalho dos profissionais da saúde. “Ao iniciarmos nosso turno, trocamos nossas roupas por trajes hospitalares. Quando entramos no quarto ou box de pacientes suspeitos ou confirmados de Covid-19, além da veste normal, utilizamos um avental de material especial, que é trocado a cada paciente. Vestimos também touca, protetor facial e máscara N95. Utilizamos luvas e calçados especiais para que não contaminemos os nossos. Há grande preocupação com a proteção dos trabalhadores, tanto que temos obtido baixos índices de contaminação comparado com outros locais”, diz.

É recomendado, ainda, que as instituições públicas e privadas não enviem os corpos para o Serviço de Verificação de Óbito (SVO). A coleta do material biológico para exame, caso não tenha sido realizada em vida, deve ser recolhida após a declaração de óbito nas próprias casas de saúde, para investigação pela equipe de vigilância local. O envio ao SVO deve ser realizado apenas diante de extrema necessidade, com a comunicação prévia ao gestor do serviço para certificação de que há capacidade de recebimento.

Como instrução para os familiares e amigos, o governo não recomenda que seja realizado velório em caso de pacientes confirmados ou suspeitos de Covid-19, durante o período de isolamento social e quarentena. Entretanto, caso a cerimônia seja realizada, a urna funerária deve ser mantida fechada durante todo o funeral e velório, para evitar qualquer contato físico com o corpo do falecido, como toque e beijo. Além disso, é recomendado que pessoas que pertençam ao grupo de risco – idosos, gestantes, lactantes, portadores de doenças crônicas e imunodeprimidos não frequentem esses ambientes. Recomenda-se também, que o enterro ocorra com no máximo 10 pessoas, não pelo risco biológico do corpo, mas sim pela contraindicação de aglomerações.

Protocolos para profissionais da saúde, agentes funerários e familiares são modificados devido ao coronavírus
Foto: Arquivo

Cerimônias fúnebres seguem novos protocolos

De acordo com o atendente de uma funerária em Bento Gonçalves, José Ramos, as ocorrências de mortes por coronavírus têm aumentado. “Nas três últimas semanas, acredito que tenha dado uma por dia ou mais, por Covid-19 ou suspeita”, conta.

A funerária na qual Ramos trabalha, segue todos os regulamentos no manejo de vítimas da doença, utilizando o EPI indicado pelo Ministério da Saúde. “Nós usamos, no preparo dos corpos que são suspeitos ou confirmados. A gente tem o macacão descartável, máscara, óculos, botas de borracha e cinco pares de luva, uma para cada procedimento que a gente faz”, explica.

Um dos cuidados é realizar o enterro ou a cremação o mais rápido possível, para que não haja transmissão da doença nas cerimônias familiares. O velório, nestes casos, não está sendo realizado em Bento. “Quando acontece a morte por Covid-19 ou suspeita, vamos ao hospital recolher o corpo, que já vem envolto em um saco plástico, mas precisamos colocá-lo dentro de outro. Depois, levamos a vítima para dentro da urna, fechamos e nos encaminhamos direto para o cemitério ou crematório, dependendo do que a família escolher”, afirma Ramos.

Mesmo quando a causa da morte não é o coronavírus, as tradições fúnebres também são alteradas. Segundo o atendente, algumas pessoas reclamam da redução de tempo, mas outras evitam as aglomerações. “Se o familiar não tinha a doença, eles não entendem o motivo de não terem mais tempo de velório. Também reclamam do número de pessoas, que varia entre nove e 14, com rotatividade. Porém, no caso de algumas famílias, mesmo que a vítima não tenha morrido por Covid-19, não querem fazer velório para evitar tumulto”, relata.

Seguindo o decreto municipal 10.506, o décimo sobre coronavírus, os funerais e cerimônias de despedidas devem ser realizadas em locais com ventilação, adotando-se as medidas de higienização e assepsia e evitando grandes aglomerações. Para que os regramentos sejam cumpridos, Ramos diz que “é obrigatório usar máscara, ter álcool em gel nas salas e deixar as portas e janelas abertas. O tempo máximo de velório é quatro horas”, conclui.

Processo de luto é alterado

Com as novas regras de cerimônias fúnebres, o processo de aceitação da perda natural do ser humano começa a ser interrompido, desencadeando outros problemas. A especialista em luto e perdas, psicóloga Franciele Sassi, explica o passo a passo do sentimento de perda. “ É uma caminhada feita entre passos para frente e para trás. O luto é um processo oscilante e depende da pessoa, da sua história, como ela estabelece suas relações em vida e o que a perda representa para ela. Sentimentos e emoções são normais e esperados que aconteçam, principalmente durante o tempo de reorganização e readaptação da pessoa sem aquele que partiu. A forma como se enfrenta e se reinveste na vida é a chave do processo, ou seja, não significa que para estar melhor será preciso parar de sentir ou esquecer, mas que se possa entender que a vida é importante e que a pessoa que partiu sempre estará presente”, aponta.

Quando o familiar morre decorrente de uma doença como o coronavírus, a dor pode ser ainda maior, provocando a necessidade de atitudes e cerimônias diferentes, utilizando até mesmo as tecnologias. “Nestes casos, além da dor do enlutado pela morte do ente querido, temos toda uma bagagem de culpa, responsabilização, medo e vergonha que podem vir junto aos familiares. É importante que a família possa fazer um ritual personalizado, de forma particular, com pessoas que sejam mais próximas. Nos de isolamento, é possível a utilização dos meios digitais como chamadas de vídeos que assegurem esses encontros. E que juntos, ou cada um em sua casa, possam prestar homenagens, acender uma vela, orar, recordar a pessoa querida a partir de fotos, filmagens, objetos”, afirma a psicóloga.

Os ritos de despedida, segundo Franciele, são importantes para que a vida daqueles que ficaram possa ter prosseguimento. “A impossibilidade de ritualizar, de dar um lugar de valor e reconhecimento social ao ente querido pode se tornar, para alguns familiares, fonte de um luto complicado ou mesmo desenvolvimento de outras condições mentais importantes e passíveis de serem avaliadas e tratadas. É essencial que as famílias exercitem meios criativos de manejar com a dor, seja falando com pessoas de confiança, construindo maneiras conjuntas de lembrar da pessoa que partiu, homenageá-la, dar valor aos próprios sentimentos e não tentar escondê-los. Afinal, a saudade nunca vai embora, mas pode se transformar em bonitas formas de recordar para viver”, finaliza.