Fazer a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) é um pesadelo para várias pessoas. Muitas horas de aulas e duas provas, uma teórica e outra prática, passo que muitas pessoas precisam realizar inúmeras vezes até serem aprovadas, sem contar o custo do processo. Aproveitando-se disso, há pessoas que oferecem o documento para venda de forma ilegal e sem burocracia. Uma rápida busca pela internet mostra diversos anúncios de “CNH quente”, “CNH facilitada” ou “CNH sem burocracia”. No Facebook, em grupos de compra e venda da região, uma pessoa, que se identifica como Maurício Colombo e usa um perfil falso, oferece o documento.
Para os interessados, ele disponibiliza um número para conversar pelo Whatsapp. Entramos em contato com o estelionatário e fingimos estar interessados na compra do documento. Sem qualquer cautela, ele passa as informações sobre como realizar a compra. No início da conversa, ele diz ser funcionário do Centro de Formação de Condutores (CFC) São Cristóvão, de Caxias do Sul. O golpista afirma fazer a CNH por “debaixo dos panos” pelo próprio sistema do Detran. “Como tenho acesso com meu computador de trabalho, consigo dar entrada e fazer toda a papelada da CNH, qualquer categoria, sem precisar fazer provas ou exames”, declara.
O criminoso solicita o envio de documentos pessoais, uma foto 3×4, assinatura em papel em branco e comprovante de depósito no valor de R$ 550,06. Tudo encaminhado através do Whatsapp. As duas contas que a reportagem conseguiu para depósito são da Caixa Econômica Federal, ambas de agências de Caxias do Sul, em nome de duas mulheres diferentes. Após o envio dos documentos e pagamento do valor, que ele diz ser a taxa do Detran para a expedição da habilitação, o infrator afirma enviar o documento para o endereço da pessoa em até sete dias úteis. Ele assegura que a carteira será expedida de forma legalizada. Após receber o documento, a pessoa deve depositar o resto do valor referente à categoria desejada, aí ele iria cadastrar o documento no sistema nacional para que seja válido.
Durante a conversa, para convencer a repórter a comprar a habilitação, ele enviou um vídeo com supostas carteiras de motorista que teria feito, e faz uma consulta no site do Departamento de Trânsito de Minas Gerais (DetranMG) mostrando que uma delas está cadastrada no sistema. O estelionatário declara que as mesmas teriam sido feitas na semana anterior à conversa, porém elas possuem a data de 2017. Mesmo dizendo realizar o procedimento no CFC São Cristóvão, ele assegura que emite o documento para todo Brasil. No vídeo, mapas de vários estados aparecem nas CNHs.
O criminoso também envia imagens de alguns documentos que teria feito e exemplo de como encaminhar a documentação necessária. Questionado se ninguém iria descobrir a fraude, ele assegura que, ao consultar no sistema, estaria constando a realização das aulas teóricas e práticas e a aprovação nos exames. Quando indagado sobre a entrega do documento, ele ressalta que prefere fazer via Sedex, mas que teria a possibilidade de ser retirado no próprio CFC. O infrator ainda pede para que, depois de receber a habilitação, indique o serviço para amigos que tiverem interesse. Sobre o cargo que ocupa dentro do CFC, ele sustenta ser diretor de provas teóricas e práticas, uma posição inexistente.
Depois de alguns dias sem contato, ele mesmo chama a repórter e pergunta se ainda está interessada e manda um exemplo de como a CNH ficaria depois de pronta, também com uma habilitação datada de 2017 e emitida pelo estado de Minas Gerais. Ele também envia imagens de envelopes dos Correios dizendo ter encaminhado recentemente três documentos que haviam acabado de ficar prontos.
Durante a negociação, dissemos estar com dificuldade para obter o documento, por não conseguir aprovação na prova prática. “Muitos clientes com o mesmo motivo, e sempre tudo certinho na mão deles”, afirma o criminoso. Solicitamos que envie fotos de CNHs emitidas na região para ter segurança de que seriam legalizadas. “Eu fiz essa semana algumas, mas não tenho fotos e vídeos porque não precisou, eram pra clientes que já tinham feito comigo”, responde.
Um dos anúncios feitos no Facebook tinha quase 60 comentários de pessoas interessadas em obter o documento de forma ilegal. O caso foi registrado na Delegacia de Polícia Civil de Farroupilha. O delegado Rodrigo Morales diz que a ocorrência está com uma equipe de investigação para que sejam feitas as primeiras diligências. Ele afirma que esse tipo de caso demora bastante para ser solucionado, pois a maioria das informações utilizadas pelos criminosos são falsas e as contas bancárias são abertas em nome de terceiros, o que é comum em casos de estelionato. Como o contato é pela internet, utilizando redes sociais e aplicativos, a polícia também tem dificuldade em ter acesso à informação e descobrir quem criou as contas.
CFC alerta que é golpe
No CFC São Cristóvão, não há funcionário com nome de Maurício Colombo. O cargo que ele diz exercer também não existe. A diretora-geral do CFC Farroupilha, que atua também no São Cristóvão, Natalina Silvestrin, diz que esse não é o primeiro caso que acontece envolvendo nome dos CFCs da região. Ao ficar sabendo do fato, o CFC registrou ocorrência na Polícia Civil e emitiu uma nota em sua página do Facebook. O golpista utilizava, em sua rede social, o local de trabalho como CFC Juvenil, que é de Caxias do Sul. Eles também foram alertados e registraram o acontecido na delegacia.
Natalina diz que já houve casos em que a pessoa comprou uma CNH falsa, foi descoberta e precisou fazer todo processo legal para obtenção do documento no CFC, mas há muitos anos isso não ocorre. “Quando alguém vem com uma CNH adulterada, de imediato, se verifica no sistema que é falsa. Nossa orientação é chamar uma autoridade competente para recolher o documento. Não há ninguém inocente nessa história, quem compra sabe que é ilegal”, declara.
Ela também diz não ser possível que o documento vendido pela internet seja feito pelo sistema do Detran. “Não existe como ser autêntica. Quando se abre o processo, a pessoa precisa pagar uma guia. Ela é liberada somente depois que o valor entra na conta do governo do estado. Todo processo é feito por meio de biometria, incluindo os exames médicos e todas as aulas. O Rio Grande do Sul é exemplo nesse processo”, ressalta Natalina.
Quem compra documento também comete crime
O advogado e mestre em direito Rodrigo Capitani afirma que tanto quem vende como quem compra documento falso pode ser punido com pena de dois a seis anos de reclusão e multa. A pessoa que utiliza a CNH adulterada ainda responde a medidas administrativas do Detran, que variam entre multa, suspensão e cassação do documento, estas últimas caso o condutor seja habilitado. As pessoas que servem como laranja, abrindo contas bancárias para depósitos, também podem ser responsabilizadas.
Capitani ressalta que, em posse de documentos pessoais e assinatura, o criminoso pode usar essas informações para cometer outros delitos e fraudes, algo muito comum. Segundo o 1º Promotor de Justiça Criminal e Diretor da Promotoria de Justiça de Bento Gonçalves, Eduardo Lumertz, os casos que se tem conhecimento na cidade de compra de CNH foram identificados na abordagem policial, quando militares solicitaram o documento ao condutor. A orientação é que as pessoas que caiam nesse golpe ou até mesmo vejam anúncios desse tipo registrem o caso na delegacia.
Processo para obtenção da CNH é rigoroso
Em nota, o DetranRS informou que a obtenção da CNH é resultado de todo um processo de formação dotado de diversos controles de segurança, que são registradas em sistema informatizado. Entre essas etapas e controles estão a frequência em aulas comprovada mediante registro biométrico e filmagem, além da aprovação em exames, com a participação de diferentes profissionais, formados por instituições de ensino superior e credenciados ao DetranRS.
Nos casos de ofertas fraudulentas que se teve conhecimento, as informações prestadas pelos golpistas não condizem com os procedimentos normais de obtenção de CNH. Até o momento, não há indício de participação de servidor do DetranRS ou de profissionais credenciados nesse tipo de irregularidade.
Fotos e vídeo: Reprodução