Em reconhecimento ao seu trabalho de valorização da gastronomia gaúcha, Valli é o primeiro cozinheiro da cidade a fazer parte de um seleto grupo que conta com nomes como Erick Jacquin, Henrique Fogaça e Emmanuel Bassoleil

Nascido no pampa gaúcho, na quarta geração de uma família que há mais de 100 anos vive do amor à gastronomia, como não havia de ser diferente, toda a história do chef Enio Valli, 36, está estritamente ligada ao fogo e a fumaça. O empenho em valorizar esses elementos em cada um de seus pratos, preparados, quase sempre, em forno à lenha ou em parilla, como é característico no sul do estado, lhe rendeu o convite para a delegação brasileira da Federazione Italiana Cuochi (FIC), reconhecida pela World Association Chefs Society (WACS).

Com o anúncio, oficializado há cerca de 10 dias, Valli se tornou o primeiro cozinheiro de Bento Gonçalves e o oitavo do Rio Grande do Sul a integrar o seleto grupo, como reconhecimento por seu trabalho em resgatar e enaltecer a cultura gastronômica local. No Brasil, somente 200 profissionais integram o grupo, que conta com nomes como Erick Jacquin, Henrique Fogaça, Emmanuel Bassoleil e Jimmy Ogro.

Conforme ele comenta, o convite foi feito de surpresa pelos chefs e diretores da FIC Brasile, Sylvio Falcón e Diego Koppe, profissional que conta com uma estrela Michelin no currículo — a mais estimada premiação da gastronomia —, pela consultoria prestada ao Cha Veggia by Mussoni, em Salice Terni, na Itália.

Após almoçarem no restaurante de Valli, no Vale dos Vinhedos, Falcón e Koppe, se apresentaram ao chef gaúcho e o nomearam ao grupo. “Os servi normalmente, só fui saber que eram da FIC quando, ao final do almoço, me convidaram. Elogiaram meu trabalho e história e falaram que buscavam pessoas como eu, brasileiros que tentam manter viva as diferentes tradições culinárias do país. Ter sido convidado para uma associação tão seleta de cozinheiros e ter sido elogiado por eles foi fantástico”, relembra emocionado.

“Infelizmente, quase não temos bibliografia sobre nossa culinária, não há informação. Por isso, o que mais conheço é o que fui criado comendo. O gaúcho sempre foi orgulhoso de sua tradição, por valorizar a pilcha, o cavalo, a música, mas a gastronomia foi sendo esquecida”

Herança dos pampas

O encantamento pelo fogo é algo que acompanha Valli desde pequeno. Suas memórias afetivas remetem a dois cenários onde passou grande parte da infância: o restaurante, onde observava o pai cozinhar com lenha enquanto se encantava com o aroma da fumaça; e o pátio dos fundos da residência em que vivia, na Praia do Laranjal, interior de Pelotas, local onde a família mantinha um forno à lenha, além de se reunir, em não raras oportunidades, para fazer o tradicional fogo de chão. “Lembro que, ainda muito pequeno, queimei todos os dedos no fogão à lenha do pátio. Essa presença da fumaça, do fogo e da lenha sempre estiveram presentes na minha juventude, sem eu perceber que aquilo me fascinava tanto”, relata nostálgico.

Se as memórias de Valli com a cozinha campeira aludem as suas mais remotas lembranças, como que por destino, sua ligação com a gastronomia vem de muito antes de nascer. Seu bisavô, um dos muitos imigrantes a fugir da crise que se alastrava pela Itália no século XIX para tentar uma nova vida em terras brasileiras, se estabeleceu em Santa Vitória do Palmar, município do extremo sul do Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Uma vez na cidade, abriria uma das primeiras mercearias e padarias do local, negócios que seriam herdados e tocados também pelo avô de Valli. Inspirado pela família, seu pai também seguiria carreira na gastronomia, se mudando para Pelotas, a maior cidade das proximidades, onde aos 30 anos abriria primeiro restaurante. Enio nasceria então, quatro anos depois. “Nasci na cozinha”, brinca.

“Por mais que eu tenha conhecido várias áreas da gastronomia, o que sempre me encantou no que fazia, principalmente na época dos restaurantes do meu pai, é como a gente cozinhava com lenha”

Somando as raízes gastronômicas italianas herdadas do bisavô e as influências da cozinha dos pampas onde viveu toda a juventude, Valli, ao seu modo, seguiu a tradição da família. Formado em turismo, trabalhou muitos anos como consultor em restaurantes de todo o estado, tendo passado também por uma experiência na cozinha na Argentina — em um dos restaurantes de Francis Mallman, chef reconhecido pela valorização da cozinha patagônica —, antes de abrir seu primeiro restaurante em Nova Petrópolis.

Após se dedicar por dois anos em uma cozinha que mesclava as culinárias italiana e gaúcha, e com a necessidade de ampliar o restaurante, Valli encontrou um casarão como esperava no 15 da Graciema, em Bento Gonçalves. Em meio a Serra Gaúcha, região saturada pela cultura italiana, o chef então abriu mão da veia gastronômica do bisavô para trazer a região os sabores dos pampas que permearam sua juventude. A meta agora, como conta, é seguir com seu projeto de valorização dessas raízes. “É um trabalho que recém começou, que olho para frente e não vejo fim. Há muita informação perdida que temos que começar a conectar”, sublinha.

Inspirações gaúchas

A lenha é elemento essencial na cozinha de Valli

Com menus preparados essencialmente no fogo, a cozinha de Valli preza pelo sabor e tradições gastronômicas dos pampas gaúcho, uruguaio e argentino. A ideia, assim como assinala o chef, é “resgatar receitas, ingredientes e técnicas de cocção”, para valorizar e manter viva uma tradição que considera “esquecida” pelos cozinheiros locais.

Em um trabalho ora de cozinheiro, ora de historiador, mantém uma pesquisa insistente na busca por inspirações que vêm da escassa bibliografia temática, viagens aos países vizinhos e, sobretudo, do “boca a boca”. “Teve um cliente, recentemente, que me falou de uma senhora do interior de que usava um tempero diferente, que ela dizia que era comum antigamente e que não se usa mais. Vou tentar contatá-la, ver que tempero é esse, onde ele se encaixa nas receitas de nossa região”, exemplifica.

É por meio desta pesquisa que coleciona e cita de cabeça, como os mais antigos que se sentavam em torno da fogueira para compartilhar histórias, os causos por trás de cada uma das marcas que, aos poucos, dão forma ao seu jeito de criar: o fogo e a parilla, a lenha e a fumaça.

Parilla

Embora com uso disseminado em toda região fronteiriça do Rio Grande do Sul, é nos pampas gaúcho, argentino e uruguaio, que é tida como tradicional. Diferente do espeto, a parilla facilita a “reação de maillard”, processo químico que acontece quando um alimento entra em contato com uma superfície muito quente. O resultado é uma espécie de caramelização, permitindo que se crie uma crosta dourada.

Fumaça

Entre os mandamentos do restaurante de Valli está “não reclamar do cheiro da fumaça”. Para além do paladar, o aroma, destaca o chef, também é elemento indispensável na cozinha do pampa. “Uma casa gaúcha tem cheiro de lenha, de fumaça, de fogão a lenha”, sublinha.

Lenha

O fogo de chão feito com lenha é um dos maiores símbolos do povo dos pampas, e também preferência na cozinha de Valli. Conforme explica, a tradição nasce com os peões que abriam pastagem para o gado e com a lenha aqueciam a casa e preparavam o “costelão”, que deixavam assando quando saiam de madrugada para tocar o gado, estando pronto próximo ao meio dia, quando voltavam do campo para o almoço.  A lenha usada pelo chef é toda de reflorestamento, acácia trazida do interior de Caxias do Sul.