De acordo com o Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (ICTQ), o número de brasileiros que recorrem à automedicação cresceu de 76% em 2014 para 86% em 2024. A médica Melissa Schwanz explica os riscos da prática em entrevista
A prática da automedicação continua em alta no Brasil, trazendo riscos que podem comprometer à saúde. A professora de Medicina da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Melissa Schwanz, explica que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a automedicação é a prática de ingerir substâncias de ação medicamentosa sem o aconselhamento e/ou acompanhamento de um profissional de saúde qualificado. “Para mais fácil entendimento, ela ocorre quando o indivíduo tem algum sintoma doloroso e/ou patológico e decide tratar-se sem consultar um profissional especializado. Desta forma seleciona o próprio medicamento, normalmente, por verificação de eficiência anterior, ou por indicação de outra pessoa não habilitada”, afirma a médica.
Dados reforçam a preocupação. De acordo com o Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação para o Mercado Farmacêutico (ICTQ), o número de brasileiros que recorrem à automedicação cresceu de 76% em 2014 para 86% em 2024. Uma pesquisa do Conselho Federal de Farmácia (CFF) revelou ainda que quase metade (47%) se automedica pelo menos uma vez por mês e um quarto (25%) o faz diariamente ou semanalmente.
Segundo a professora, os medicamentos mais comuns na automedicação são os chamados MIPs (medicamentos isentos de prescrição), como analgésicos e antitérmicos, em especial o paracetamol e a dipirona. “Acontece de acordo também com a sazonalidade. No inverno, medicamentos contra sintomas de resfriado têm um crescimento de consumo”, observa.

A pesquisa do CFF mostra ainda que, entre os moradores da região Sul, 29% afirmam não usar remédios sem prescrição, um índice superior ao de outras regiões.
Riscos imediatos e a longo prazo
A médica alerta que os perigos são múltiplos. “As consequências da automedicação e do uso indiscriminado de medicamentos podem levar ao autodiagnóstico incorreto, interações medicamentosas perigosas, erros comuns tanto na administração, quanto na dosagem e na escolha incorreta da terapia”, frisa.
A curto prazo, os principais perigos são intoxicações, alergias e reações adversas. Já a longo prazo, podem ocorrer dependência de medicamentos, lesões em órgãos como fígado, rins e estômago, além da resistência bacteriana, especialmente no uso inadequado de antibióticos.
Outro problema, segundo Melissa, é o risco da automedicação atrasar diagnósticos sérios. “O uso indiscriminado de medicamentos pode aliviar temporariamente sintomas de doenças graves (como infecções, hipertensão ou diabetes), retardando a busca por avaliação médica e, consequentemente, o diagnóstico correto e o tratamento adequado”, salienta.
A especialista explica que o uso incorreto de remédios pode ainda gerar interações perigosas. “Podem comprometer a eficácia do tratamento ou causar efeitos adversos graves, e propiciar perdas de absorção de nutrientes”, afirma. Exemplos incluem o uso de anticoagulantes com anti-inflamatórios, que aumenta o risco de sangramentos, e o uso prolongado de inibidores da bomba de prótons, como o omeprazol, que pode reduzir a absorção de vitamina B12, cálcio e vitamina D.

A docente destaca ainda que anti-inflamatórios podem causar danos no trato gastrointestinal, urinário e cardiovascular. Já analgésicos podem provocar dependência. “A dependência destes ocorre devido a alterações no cérebro causadas pelo uso prolongado da substância”, explica.
Em relação aos antibióticos, os riscos envolvem desde alterações na microbiota intestinal até a disseminação de superbactérias resistentes. “Esta epidemia silenciosa provocou cerca de 4,95 milhões de mortes em todo o mundo, sendo 1,27 milhões diretamente por infecções de bactérias resistentes, somente em 2019”, alerta.
Segundo a pesquisa do CFF, mulheres entre 45 e 59 anos, com maior nível de instrução e ativas no mercado de trabalho, são o grupo mais propenso à prática. As recomendações de terceiros também pesam: 68% seguem orientações de familiares, 41% de amigos, 27% de vizinhos e 48% de balconistas de farmácia.
No Brasil, a prática é reforçada por fatores culturais e dificuldades de acesso ao sistema de saúde. “Culturalmente, existe uma forte tradição do ‘autocuidado rápido’, em que muitos brasileiros recorrem a medicamentos para tratar sintomas leves em casa, evitando consultas médicas”, explica.
O preço mais baixo e a facilidade de comprar remédios sem receita também favorecem o hábito. Propagandas e promoções em farmácias, acrescenta a médica, acabam reforçando essa prática.
Melissa ressalta a importância de saber diferenciar sintomas leves dos que exigem avaliação médica imediata. “Sintomas leves e autolimitados, como pequenas dores de cabeça ou resfriados comuns, podem ser manejados em casa. Já sinais como febre alta persistente, dores intensas, falta de ar, sangramentos, desmaios, alterações neurológicas, dor no peito ou inchaço súbito exigem atenção imediata”, evidencia.
Para reduzir os riscos, a professora defende que o poder público e profissionais de saúde invistam em fiscalização, regulação e campanhas educativas. Ela cita como exemplo a Semana Estadual do Uso Racional de Medicamentos, instituída no Rio Grande do Sul, e as ações realizadas por universidades e conselhos de saúde. “A promoção do acesso rápido e facilitado a serviços de saúde garante que consultas médicas e orientação farmacêutica estejam disponíveis e acessíveis à população. É fundamental para mudar este cenário”, conclui.