Nesta reportagem da série em homenagem aos 150 anos de imigração italiana, integrantes de grupos culturais abordam a importância destas manifestações na preservação da cultura

Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul e municípios vizinhos da Serra Gaúcha respiram cultura italiana. Nas vozes e nos passos de quem preserva esse legado, a música e a dança folclóricas não são apenas entretenimento: são formas de resistência, memória e identidade. Mesmo diante dos desafios modernos, grupos como Ragazzi Dei Monti, Grupo Vicentino e Ballo D’Italia seguem firmes em sua missão de manter vivas as raízes deixadas pelos imigrantes italianos há mais de um século.

Vozes que ecoam a história

O Grupo Vicentino, de Monte Belo do Sul, é um exemplo de longevidade e dedicação. Há mais de 50 anos, seus integrantes levam aos palcos a sonoridade das músicas trazidas da região do Vêneto, como “Mérica Mérica”, “Bella Polenta” e “Massolin dei Fiori”, que narram com emoção as dores e esperanças da imigração. “Muitas dessas músicas nos fazem reviver o que nossos antepassados passaram. Cantar é reviver, é homenagear, é preservar”, afirma Lourdes Moro Robetti, integrante do grupo.

A história do Vicentino começou com a união das famílias Gabriel, da Província de Treviso, e Barbieri, da comuna (município) de Schiavon, que chegaram ao Brasil em 1948. O nome do grupo é uma homenagem à província de Vicenza e, especialmente, ao patriarca Antônio Barbieri, “um grande incentivador e figura central no surgimento do grupo. No início, sob o nome de ‘Grupo São Francisco’, as apresentações eram mais intimistas: cantavam nas missas, nos tradicionais filós de família e em diversos momentos festivos, como as celebrações da colheita da uva. Era a música tecendo os laços comunitários e a fé”, recorda Lourdes.

Grupo de Canto Folclórico Vicentino é de Monte Belo do Sul

A trajetória inclui apresentações em festivais regionais, cantorias e filós, e um dos momentos mais marcantes foi a turnê pela Itália em 2008. “Foi, sem dúvida, uma experiência inesquecível de reencontro com as raízes. Foi na região do Vêneto”, conta.

A receptividade do público em Bento Gonçalves e em toda a região é sempre muito positiva, como elabora Lourdes. “Percebemos que as pessoas apreciam muito as apresentações e a oportunidade de se conectar com essa herança cultural. Há uma grande expectativa de que as novas gerações se engajem e deem continuidade a esse valioso legado da cultura italiana”, reforça.

O trabalho é fortalecido por parcerias importantes com o Centro de Tradições Italianas de Monte Belo do Sul, a Secretaria da Cultura e Turismo e a Prefeitura Municipal. “Oferecem um valioso apoio”, finaliza a integrante do grupo, que atualmente conta com 13 integrantes, o regente Valmor Longhi e o coordenador Ari Luiz Robetti.

Música que ressignifica o passado

Com mais de mil apresentações em oito estados brasileiros e turnês na Itália, o grupo Ragazzi Dei Monti, também originado em Monte Belo do Sul, é outro pilar da preservação cultural. Fundado há 34 anos, o grupo alia repertório folclórico tradicional a composições próprias que misturam a musicalidade italiana com ritmos brasileiros e gaúchos. “A música é um dos principais elementos que traduzem o amor pela tradição”, afirma Alvaro Manzoni, líder do grupo. “Ela continuou a evoluir com o tempo, pois além das canções trazidas pela imigração, compositores do Talian seguem produzindo. A dança também é um ícone importante, pois transmite a alegria de um povo que chegou de uma pátria sofrida e aqui conseguiu sobreviver através desta manifestação que envolve pessoas mais jovens e estimula para que desta maneira siga a perpetuação da memória”, reforça o diretor e um dos fundadores do Ragazzi Dei Monti.

O grupo preserva a autenticidade das raízes italianas, mas também cria novas formas de se conectar com o público atual. “No início, somente o tradicional folclórico como a marcha, tarantela e valsa predominavam. Hoje, o repertório vai desde o folclore, que é forte dentro do grupo, até ritmos que mesclam com o cancioneiro gaúcho, a música romântica de época, a popular dos anos 60, 70, 80, 90, e as música autorais que já superam o número de 50. O show do Ragazzi é 110% voltado ao italiano de forma geral, já os bailes mesclam com o gaúcho e popular”, salienta Manzoni.

Integrantes do grupo Ragazzi Dei Monti

Ele relembra do início da banda. “Iniciamos com fitas K7 da família Barbieri, de Schiavon, ao norte da Itália. Porém com o advento do CD e e-mail, a pesquisa foi tornando-se cada vez mais acessível e hoje, com as redes digitais, tem sido constante a pesquisa através delas. Além disso, as composições próprias com temas diversos e principalmente histórias contadas sobre imigração através da minha visão como compositor, foram tomando forma e o grupo aderiu ao processo criando arranjos, alguns assemelhados ao folclore, e outros com uma musicalidade mais brasileira. Todavia é sempre importante pautar que a pesquisa está sempre evidente no dia a dia, pois as letras contam também o cotidiano dos descendentes e as histórias ouvidas dos mais antigos”, explica Manzoni.

Segundo ele, antes não se tinha este senso de preservação e as canções italianas eram tema de cantores espontâneos após as festas de comunidade, quando o vinho em excesso já tinha subido à cabeça. “Com o tempo isso foi mudando e com novos arranjos musicais a música foi se transformando em harmonias alegres e ao mesmo tempo gostosas de ouvir. Hoje, crianças e jovens absorvem muito bem canções como “La Bella Polenta” e as tarantelas. As festas tradicionais, feiras e eventos contemporâneos ajudaram e ajudam muito a transformar o contexto, já que a música que o Ragazzi faz, harmoniza com estes momentos”, frisa.

O grupo é um ano mais velho que o município de Monte Belo do Sul, tendo sido concebido ainda em Monte Belo, quando era distrito de Bento Gonçalves. “As histórias continuam as mesmas, já que a herança também é a mesma. É possível dar continuidade ao trabalho de divulgação e os Poderes Públicos têm esse dever de manter as políticas públicas para a cultura e assim fomentar a fruição da mesma através de ensino nas escolas ou através de oficinas, porque embora não seja uma manifestação coletiva, ao menos uma parte da sociedade vai estar assegurando a salvaguarda do Talian em todos os seus aspectos”, pondera.

Ragazzi Dei Monti na 33ª ExpoBento e 20ª Fenavinho

O líder, que também é secretário de Cultura e Turismo no município, destaca as principais dificuldades. “O caso das mídias que eram comercializadas pelo grupo: fita K7, LP, CD e DVD, foram substituídas pelos pen drive e mídias digitais, assim, não existe mais a comercialização direta em valores que eram investidos nas próprias produções. Além disso, o poder aquisitivo das pessoas tem baixado e faz com que em jantares, por exemplo, sejam contratados grupos de menor valor. É fato que temos que vender não apenas um produto musical, mas sim uma história construída a mais de 34 anos”, afirma.

No entanto, ele também relembra das conquistas. “Durante tanto período de atividade, temos muitas histórias para contar, porém podemos citar o lançamento do primeiro LP e K7 “Sono Imigrante”, que foi lançado no advento dos CDs, o Mérito recebido da Faixa Nobre Gravadora “o primeiro CD de Ouro da Música Folclórica Italiana no Brasil” com a coleção “Mérica Mérica”, a gravação do 1º DVD na Festa da Polenta em Venda Nova do Imigrante (ES) e do 3º gravado em Isola Vicentiva (Itália). Sem contar os Méritos Cultura Gaúcha da Secretaria da Cultura do Estado, troféu Teixeirinha da Assembleia Legislativa do RS, Medalha de Honra ao Mérito Padre José Ferlin da Câmara de Vereadores de Monte Belo do Sul, Troféu Talian, e tantos outros”, completa.

O Ragazzi Dei Monti também levou sua arte à Itália. “Por duas ocasiões estivemos ao Norte da Itália fazendo tournée e outra acompanhando o Grupo de Teatro Fratelli di Cuore na trilha sonora. O grupo é brasileiro e perpetua a cultura herdada da imigração”, relata.

Dança que conta histórias

A dança também tem papel fundamental nesse resgate. Para Maiane De Mozzi, professora de dança de três grupos – Fabemballare, Piccolli Ballerini e Ballo D’Italia –, as coreografias italianas não são apenas expressão corporal. “As danças contam histórias, revelam costumes de cada povo, mostram os afazeres do dia a dia, revelam os costumes de determinada época. Geralmente são dançadas em pares, em ritmos de valsa, polca, tarantela, saltarello, entre outras. Cada região da Itália tem sua característica na dança, exemplo: no sul da Itália é dançada as Tarantelas”, salienta Maiane.

Ela conta sua trajetória com a dança italiana. “Sempre fui apaixonada pela dança, porém aos 11 anos fui apresentada à dança italiana através de um projeto municipal chamado “Conheça a Itália através da dança”, nele aprendi e dancei em um grupo por cerca de quatro anos. Aos 18, com incentivo da tia Juraci, montei meu próprio grupo e comecei a ensinar as coisas que tinha aprendido. Logo depois realizei vários cursos onde aperfeiçoei o aprendizado. O início não foi fácil, encontrar casais para compor o grupo, começar a ensinar… não tínhamos materiais e nem recursos. O Grupo se consolidou e está ativo até hoje: o Fabemballare, completando neste ano 17 anos”, afirma a coreógrafa, que atualmente faz parte da Federação Folk La Sereníssima, onde tem todo apoio cultural.

Grupo de Danças Folclóricas Fabemballare surgiu em 2008, em Bento

No entanto, segundo ela, a preservação das danças é bem complexa. “São poucas pessoas adeptas e não temos muitos incentivadores na Serra Gaúcha. Em todo RS temos menos de 10 grupos. Um dos pontos que incentivam os grupos é quando municípios ou pessoas nos chamam para apresentações, sendo estas, tanto para o público em geral em festas locais ou mesmo em festas particulares”, frisa.

Hoje, os ensaios coordenados por Maiane são estruturados tecnicamente, com alongamento, prática de passos e estudo sobre trajes, músicas e origens. “Antes de ensinar, eu preparo a aula com base na dança escolhida. E além da técnica, a dança envolve sentimento. O maior desafio está na dificuldade em encontrar mais pessoas que se disponibilizem a aprender e apresentar a dança italiana, muitos tem vergonha, acham que não conseguem aprender ou não querem o compromisso”, pontua.

Os três grupos de dança que Maiane trabalha surgiram em anos distintos. O Grupo de Danças Folclóricas Fabemballare, surgiu em 2008, em Bento Gonçalves por iniciativa dela e apoio de sua tia, Juraci de Mozzi.
O Ballo D’Itália surgiu no ano de 1993. “Mantém viva a cultura italiana além dos costumes já praticados no dia a dia da população, como as comidas típicas e a língua Talian. A dança mostra mais um lado da nossa cultura que retrata o companheirismo, a alegria, diversão e também os costumes diários dos italianos, como as profissões”, declara Maiane. Já o Piccolli Ballerini, surgiu em 2017, também em Monte Belo do Sul.

Desafios e esperança para o futuro

Manter vivas essas manifestações exige esforço e criatividade. “As maiores dificuldades surgem quando os grupos param no tempo. É preciso inovar, adaptar, buscar novos caminhos. A pandemia e a tragédia climática de 2024 foram momentos duros. Na pandemia do COVID-19 superamos um pouco nossas dificuldades com o projeto RAGAZZI DIGITAL, que pode ser conferido no site www.ragazzidigital.com.br”, afirma Manzoni.

Lourdes, do Grupo Vicentino, também vê desafios na renovação. “Manter as atividades do grupo enfrenta seus desafios. O principal, atualmente, é a dificuldade em conseguir novos integrantes. A rotina moderna e a falta de tempo de muitas pessoas tornam a busca por novos componentes um processo complicado”, frisa.

A esperança é poder transmitir toda essa paixão e tradição para as novas gerações. “Especialmente para meus netos, garantindo que a cultura e a música italiana continuem a ecoar por muito tempo em Monte Belo e região”, ressalta Lourdes.

Já Maiane acredita no potencial transformador da dança. “Permita-se dançar, todos nós somos capazes. Aprender não se resume apenas à técnica. A dança é uma arte que permite expressar sentimentos, contar histórias e conectar-se com o seu corpo de formas únicas. Uma das principais vantagens da dança é que não tem limite de idade, o que a torna uma atividade ideal para iniciar em qualquer fase da vida, desde a infância até a velhice, permitindo que seja praticada ao longo dos anos”, finaliza.

Manzoni deixa uma mensagem: “A música e a arte são sinônimos de muita superação. As futuras gerações, devem seguir estes exemplos, se não quiserem cantar ou dançar, que possam buscar algum tipo de arte que lhe dê prazer e que ao mesmo tempo sirva como exemplo para seguir adiante, valorizando os que com coragem nos precederam”, conclui.

Cidades irmãs italianas de municípios da região:

Bento Gonçalves: São Rovereto, Nogaredo, Terragnolo, Trambileno, Villa Lagarina, Mori, Isera e Brentonico. As cidades pertencem à região de Vallagarina, na Província de Trento – Itália.

Garibaldi: Conegliano, na Província de Treviso.

Farroupilha: Latina da região do Lácio, província de Latina.

Carlos Barbosa: Borso del Grappa, Treviso e Nove, na Província de Vicenza.

Santa Tereza: San Biagio di Callalta, Treviso.

Monte Belo do Sul: Schiavon, Vicenza.