Fenômeno cresce entre jovens e gera debate entre psiquiatras, sociólogos e na cultura pop

Eles uivam, andam de quatro, usam caudas postiças, orelhas e até rugem. Mas não se trata de uma encenação teatral, nem de um cosplay de fim de semana. Estamos falando dos therians — pessoas que acreditam possuir uma profunda conexão com um animal não humano e, por isso, incorporam em sua rotina comportamentos e aparências dessa criatura.

Apesar de parecer um fenômeno recente, a chamada therianthropia tem raízes históricas. “A identificação com um animal era comum em sociedades tribais, integrando rituais totêmicos”, explica o psiquiatra Roberto Nichetti. “Esse aspecto simbólico-espiritual foi estudado desde o século XIX, especialmente por sociólogos europeus”, salienta.

Entre o símbolo e a psicose

Nichetti é enfático ao dizer que a therianthropia, por si só, não é reconhecida como um transtorno mental na classificação psiquiátrica atual. O ponto central, segundo ele, está no chamado insight (compreensão): “em geral, o que diferencia uma identidade therian de uma zoantropia, é o fato de que na primeira há “insight”, ou seja, o therian sabe que não é um animal, apenas representa ser. Mas é justamente dentro deste “representa” que podemos ter um espectro amplo que vai desde uma significação bastante simbólica de sua identificação com o animal, até uma grande obsessão em manter-se paramentado em diversos contextos sociais com despreocupação em relação ao ambiente e contexto em que há a exposição”, frisa.

Há therians que sentem necessidade compulsiva de se vestirem como um animal em todos os contextos

Há therians que sentem necessidade compulsiva de se vestirem como um animal em todos os contextos, mesmo os mais inapropriados, como entrevistas de emprego ou cerimônias formais. Nestes casos, segundo o psiquiatra, a psicoterapia voltada para o desenvolvimento do insight e, eventualmente, tratamento para transtornos obsessivo-compulsivos podem ser indicados.

A identificação de um therian com algum animal específico é investigada etiologicamente. “A causa do fenômeno em uma determinada pessoa, depende principalmente de investigar o estado mental da pessoa, seu histórico pessoal, a presença ou não de outros sinais e sintomas que possam remeter a presença de uma síndrome característica e relacionada a um transtorno mental; e, para melhor situar em que ponto a theriantropia está, no espectro acima citado, investigar o significado subjetivo que o animal tem para o paciente”, salienta.

Cultura, internet e identidades

O crescimento do número de therians no mundo contemporâneo, segundo Nichetti, tem múltiplas causas. Fatores biológicos, como o aumento da prevalência de transtornos psicóticos e de personalidade, se somam a um caldo cultural que favorece a expressão de identidades alternativas. “Os fatores sócio-culturais contribuintes também são muitos, como podemos observar, a partir de fenômenos paralelos, como o aumento e maior tolerância social ao hábito das tatuagens, bodypiercing, body modification, as febres geek, cosplayers, e até mesmo a evolução do figurino e vestuário, onde hábitos que há 40 anos eram raros e tidos como movimentos de subversão e rebeldia, iniciados com os movimentos da contra-cultura, e que foram se popularizando ao longo das décadas, hoje estão bastante popularizados e difundidos em toda a cultura ocidental e também em países do oriente onde predominam influências ocidentais”, explica.

Roberto Nichetti, médico psiquiatra

As redes sociais também cumprem um papel ambíguo. Por um lado, elas proporcionam um espaço seguro de pertencimento para esses indivíduos. Por outro, podem reforçar e intensificar a obsessão, caso o comportamento se torne uma necessidade para validação social. “Se o therian desenvolveu uma obsessão pelo tema, também está indicada psicoterapia psicodinâmica e psicoterapia cognitivo-comportamental”, reforça Nichetti.

Patologia ou excentricidade?

Segundo o profissional, se o therian vive sua identidade de forma simbólica, ritualística ou como forma de lazer não há com o que se preocupar. “Experiências de identificação profunda com animais, que fazem parte de um contexto ritualístico e espiritual, ou que se mantenham restritas ao âmbito individual, ou compartilhada por um casal, ou ainda em grupos identitários onde a pessoa se sinta aceita a partir dessa identidade, com essa identidade não trazendo sofrimento psíquico subjetivo, nem fere leis ou normas sociais estabelecidas, não são considerados um transtorno, no máximo podem ser descritas como uma excentricidade pessoal”, esclarece Nichetti.

Mas há casos mais complexos. Alguns therians desenvolvem uma relação egodistônica com sua identidade — ou seja, não querem sentir essa identificação com o animal, mas não conseguem evitar. Nestes casos, o sofrimento psíquico pode indicar a presença de um Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) ou um Transtorno Delirante.

Ainda assim, há espaço para nuance. Em situações em que a identidade therian se transforma em fonte de renda ou reconhecimento, como em canais de vídeo, redes sociais (principalmente no Tik Tok, onde indivíduos com essas características mostram sua rotina) ou performances artísticas, a fronteira entre o normal e o patológico pode precisar ser revista. “O contato dos fãs com seguidores em função da identidade therian podem ser até benéficos e saudáveis, desde que não contribuam para o aumento da obsessão, que pode ser prejudicial. Em geral, o insight com relação ao fenômeno é determinado muito mais pela pré-disposição individual do que a sua exposição ao material”, frisa Nichetti.

Espelho de uma sociedade em mutação

Do ponto de vista sociológico, a existência de pessoas que se identificam como animais não é apenas uma curiosidade. Segundo o psiquiatra, ela diz algo mais profundo sobre a condição humana contemporânea: um tempo em que os limites entre o corpo e a identidade, entre o real e o performativo, entre o simbólico e o concreto, estão em constante negociação.

Sobre as intervenções terapêuticas, o tratamento psiquiátrico está indicado para os casos onde a zoantropia é um sintoma dentro de uma síndrome psiquiátrica, e quando a obsessão pelo fenômeno denota a presença de um TOC. “A psicoterapia orientada para o insight está indicada nos casos acima, e também naqueles onde o insight quanto a exposição em contextos inapropriados está prejudicado. Do ponto de vista psiquiátrico e psicológico, o fenômeno merece ser estudado tendo-se em vista o aprimoramento da terapêutica”, finaliza o psiquiatra.

Como destaca o profissional, o fenômeno dos therians, assim como tantos outros que desafiam normas tradicionais, é um reflexo das transformações culturais e sociais rápidas pelas quais vêm passando a sociedade.