Nesta série de reportagens em comemoração aos 150 anos da imigração italiana, mostramos como esse legado segue presente na culinária da Serra Gaúcha
Desde a chegada das primeiras famílias italianas à Serra Gaúcha em 1875, a gastronomia se transforma em uma das expressões mais autênticas da identidade regional. De Caxias do Sul a Bento Gonçalves, passando por Garibaldi, Farroupilha, Antônio Prado e tantas outras cidades, os sabores herdados do Vêneto, Lombardia e Piemonte ganham alma brasileira sem perder a essência.
A culinária dos imigrantes italianos se baseia, originalmente, na agricultura de subsistência. O milho e o trigo possibilitam a produção de polenta, pães e massas. Já o galeto al primo canto surge da criação de frangos adaptada ao ambiente serrano — hoje símbolo da fartura e da hospitalidade da região.
Pratos como sopa de capeletti, tortéi de abóbora, radicci com bacon, fortaia e sagu com creme consolidam uma mesa que celebra a memória e a coletividade. “Nossa gastronomia é extremamente diversificada, embora tenha raízes predominantemente italianas”, afirma o sommelier Marcelo dos Santos, ao destacar como a fusão de influências, incluindo a gaúcha, compõe um cenário único.
Rotas turísticas que servem história no prato
Na Serra Gaúcha, comer é viver uma experiência cultural. As rotas turísticas estruturadas oferecem mais do que paisagens: entregam vivências que unem tradição, sabor e identidade.
No Vale dos Vinhedos, o visitante encontra vinícolas familiares e industriais, hospedagens temáticas e restaurantes que harmonizam receitas italianas com vinhos premiados. O local é o primeiro no Brasil a conquistar a Denominação de Origem, selo que atesta a qualidade e a autenticidade dos vinhos produzidos ali. Já os Caminhos de Pedra funcionam como um museu vivo da imigração, onde casas centenárias abrigam cantinas, salumerias e fábricas artesanais de massas.

As Cantinas Históricas nos distritos de Faria Lemos e Tuiuty preservam o clima rural com almoços típicos e vinhos caseiros. A Rota Encantos de Eulália valoriza agroindústrias, colheita da uva e receitas feitas com autenticidade. Já o Vale do Rio das Antas mistura paisagens exuberantes a restaurantes e vinícolas com forte apelo cultural.
Educação que forma profissionais e preserva raízes
No Senac Bento Gonçalves, tradição e inovação se encontram na sala de aula. O professor Matheus Loureiro, responsável pelo curso de Gastronomia, explica que os cursos abordam desde os clássicos da cozinha italiana, como massas frescas, recheadas e risotos, até adaptações contemporâneas com ingredientes locais. “Trabalhamos com as técnicas clássicas que são os pilares da gastronomia italiana e agregamos as técnicas inovadoras da culinária atual. Isso acontece através de pesquisas, inspirações em chefs e criatividade dos alunos”, explica.
Para Loureiro, conhecer os ingredientes da região é essencial: “Fazemos uma amostragem de produtos regionais, mostrando ao aluno a importância de conhecer o fator histórico de cada item.” Além disso, o curso promove visitas técnicas a produtores locais, conectando teoria e prática de maneira sensível e respeitosa.

Bento recebe a World Cup Tiramisu
Neste mês, a Serra Gaúcha sedia a World Cup Tiramisu, evento internacional que celebra uma das sobremesas mais tradicionais da Itália. O Senac se envolve ativamente: organiza oficinas internas e externas, realiza workshops e discute em aula a complexidade dos ingredientes, como o mascarpone e o café. “É uma grande satisfação ter um evento de tanta magnitude na nossa região”, declara Loureiro, com entusiasmo, ao destacar a valorização do tiramisù como símbolo da identidade italiana.
O vinho como protagonista cultural e gastronômico
A vitivinicultura, introduzida pelos italianos, hoje é base econômica, cultural e turística da região. Em Bento Gonçalves, considerada a capital brasileira do vinho, o curso de sommelier do Senac, ministrado por Patrícia Possamai, reforça essa relação. “O espumante da Serra Gaúcha é um grande coringa na harmonização. Ele tem gás e acidez, o que limpa o paladar e valoriza os pratos”, ensina Patrícia. Ela destaca os Proseccos produzidos localmente, que apresentam alta qualidade e se assemelham ao perfil italiano, tornando-se versáteis e muito apreciados com massas, embutidos e queijos. Para ela, uma refeição completa precisa de um bom vinho: “Um jantar sem vinho é como uma noite sem estrelas”, pontua.

O curso aborda vinhos de diversas regiões do mundo, mas dá foco especial aos rótulos gaúchos. “Eles têm acidez alta e combinam muito bem com a gastronomia italiana”, justifica a sommelier.
Harmonizações e tendências: o olhar do especialista
O sommelier Marcelo dos Santos detalha os pares perfeitos entre comida e vinho. Ele indica o Merlot para massas com molho vermelho e a Sangiovese — uva italiana cultivada localmente — como alternativa para pratos variados. Para a sopa de capeletti, sugere um Pinot Noir leve ou um Chardonnay com toque de madeira. “A harmonização ideal vai além do sabor: é cultural. Quem vem a Bento quer provar o que se come e se bebe aqui”, afirma. Ele também observa um erro comum: “Muitas pessoas escolhem o vinho sem compreender o prato. Falta orientação, e o papel do sommelier é justamente guiar essas decisões.”
Sobre tendências, Santos nota uma crescente procura por vinhos desalcoolizados e rótulos com menos madeira e mais fruta, alinhados ao perfil mais leve e fresco da gastronomia atual.
Festas e sabores que mantêm viva a italianidade
A gastronomia italiana da Serra Gaúcha também se expressa por meio de eventos que celebram seus produtos, rituais e origens. Bento Gonçalves realiza a Fenavinho com desfiles temáticos, festival enogastronômico e a Festa da Vindima, onde a pisa da uva é tradição. A ExpoBento, maior feira multissetorial do Brasil, também dedica amplo espaço à enogastronomia local. Garibaldi sedia o Festival do Grostoli e o Festival Colonial Italiano. Monte Belo do Sul realiza o Polentaço, com porções gigantes distribuídas ao público, e a Festa do Agricultor. Carlos Barbosa promove o FestiQueijo, dedicado à harmonização entre queijos e vinhos.
Santa Tereza, por sua vez, organiza a ExpoSanta e o Santa Teresa Gourmet, que reúne mais de 30 restaurantes servindo pratos típicos a preços populares. Em 2025, essas celebrações ganham contornos históricos, com o sesquicentenário da imigração italiana no Rio Grande do Sul sendo comemorado com homenagens, apresentações culturais e a reafirmação do legado deixado pelos primeiros colonizadores.
Identidade servida à mesa
A gastronomia italiana da Serra Gaúcha não é apenas herança: é expressão viva de um povo que transformou a saudade em sabor, e a memória em experiência. Como resume Marcelo dos Santos, “o vinho faz parte não apenas da cultura italiana, mas da identidade de Bento Gonçalves. Cidade e cultura do vinho se entrelaçam.”
Entre polenta, galeto, tortéi e tiramisù, a Serra segue servindo mais do que refeições: oferece histórias, encontros e raízes profundas em cada garfada e cada taça.