Nos últimos anos, a Serra Gaúcha tem se consolidado como um polo promissor para o humor. Com a crescente popularização do stand-up comedy e o fortalecimento de teatros e clubes de comédia, comediantes locais têm encontrado cada vez mais espaço para se apresentar e desenvolver suas carreiras.
Conversamos com quatro artistas que fazem do riso seu ofício: Måhrcia Carraro, Wellington de Souza Lescano, Angélica Mello e Rui Barbosa. Suas trajetórias revelam desafios, momentos hilários e a esperança em um futuro ainda mais promissor para a comédia regional.
O caminho para o palco
Para Måhrcia Carraro, atriz e palhaça de Bento Gonçalves, o humor foi uma extensão natural de seu trabalho teatral. “Não foi um caminho escolhido, mas sim um caminho que me escolheu. É o que mais atuo hoje e onde aprofundei meus estudos de comicidade, improviso e construção de personagem”, explica. Sua jornada iniciou após uma encomenda de uma peça com personagens italianos. “Após a estreia houve convite para permanecer com a peça uma temporada. Depois os personagens iniciais foram se dividindo em outros, originando a atual Família Porpetta que hoje tem oito personagens”, conta.

Segundo ela, suas principais inspirações são o gaúcho Ivo Bender que trata o humor com destreza e Miguel Falabella que na atualidade é o que melhor desenvolve peças teatrais com uma comédia envolvente e inteligente, segundo a comediante. Além disso, ela destaca inspirações femininas. “Admiro muito a comédia exagerada de Lucille Ball e da jovem Dercy Gonçalves, que possuem uma inocência em suas interpretações próximas às de uma criança em suas primeiras descobertas. Há também Angela Dippe com um humor bem relacionado com a atualidade e tempo de comédia bem único”, frisa.
Já Wellington de Souza Lescano, de Garibaldi, sempre gostou de escrever e se inspirou nos programas humorísticos da TV. O boom do stand-up na região o impulsionou a buscar espaço, começando como “open mic” em shows de Vinicius Ribas e Rafael Campos. “Minhas influências nacionais são Patrick Maia, Rodrigo Marques, Nando Viana e Daniel Duncan e internacionais são Bo Burnham, George Carlin, John Mulaney, Dave Chapelle e até o Adam Sandler (recomendo procurar esses nomes nos streamings). Gosto do estilo mais politizado e ácido, mas que também não usa tanto palavrão ou assuntos batidos no palco”, pondera.

Angélica Mello, de Caxias do Sul, sonhava com a comédia desde a infância, influenciada por programas de televisão. Seu humor, no entanto, foi moldado por experiências do cotidiano, especialmente em ambientes de trabalho. “Minhas influências não estão necessariamente no palco, mas com pessoas que convivi e convivo até hoje, muito do meu humor veio de trabalhar em chão de fábrica”, conta.
Para Rui Barbosa, a comédia começou de forma inesperada: seus vídeos engraçados durante a pandemia viralizaram, levando-o ao stand-up. Com o tempo, ele e seu sócio Diogo Severo abriram o primeiro comedy club de Caxias do Sul. Ele aponta sua principal influência na comédia. “Marcito Castro, que foi o primeiro comediante grande que me deu oportunidade de abrir seu show. Trago muito comigo essa pegada de nostalgia nos meus textos e ele me inspira, pois faz muito bem isso”, admite.
A cena do humor na região
Todos os entrevistados concordam que a cena humorística na Serra Gaúcha está em ascensão. Måhrcia destaca que os espetáculos lotam sempre que acontecem. Lescano ressalta que os comedy clubs facilitaram a chegada de nomes consagrados e ajudaram a profissionalizar os artistas locais. “A cena da comédia na região foi criada por nós, comediantes, assim como donos de estabelecimentos que assumiram esse risco de trabalhar com comédia. Antes era incrivelmente difícil trazer alguma atração maior para a cidade, porém com os comedy clubs a todo vapor a cena começa a ser criada. Eu sempre digo que a cena não existe sem os comediantes locais e a existência de comedy clubs tornou possível falar de serra gaúcha e comédia stand up na mesma frase. Percebo que o interesse das pessoas tende a crescer e ainda há espaço para outras casas, em outras cidades, também abrirem as portas para o stand up”, declara.
Em Bento Gonçalves, os comediantes da região, como Lescano, tem espaço no Serra Comedy. Em Caxias do Sul há outros locais para a comédia, como o Polenta Comedy. “A cena da comédia deu um salto absurdo no último ano, tem espaço para crescimento e estamos desenvolvendo novos talentos”, diz Barbosa.
Desafios e superação
Como em qualquer carreira artística, os desafios são constantes. Måhrcia aponta que a pandemia e as enchentes impactaram duramente os artistas, além de ser necessário uma reinventação contante no trabalho. “A superação é diária, pois estamos em uma reinvenção constante de repertórios que tenham menor equipe técnica, menos gente em cena e o mínimo possível de cenário e adereços para que se viabilize a circulação de espetáculos. Tanto que no cenário atual o que há mais circulação são os Stand-Up Comedy, já que o custo de produção das apresentações é mais em conta para o contratante”, revela.
Wellington destaca a dificuldade de viver exclusivamente da comédia. “Já ouvi a seguinte frase: ‘Na noite de stand up todo mundo ri, menos o comediante e o dono do bar’. Há também a questão dos bloqueios criativos ou noites que não rendem riso algum da plateia. Mas a vida de um comediante é assim, com altos e baixos, como toda profissão. O segredo para superar essas adversidades é tentar ser um profissional melhor e tentar estratégias novas para cair no gosto do público (podcasts, conteúdo na internet, etc)”, enfatiza.
Angélica enfrentou desafios pessoais, como um divórcio e uma paralisia facial. “Superei fazendo dos limões uma limonada”, conta. Barbosa, por sua vez, viu a falta de oportunidades como um obstáculo e decidiu criar o próprio espaço para humoristas. “Artista quando se está no início sofre por falta de oportunidade, para solucionar isso, criamos nossa oportunidade fazendo o primeiro Comedy Club de Caxias do Sul, e assim conseguimos fazer com que os maiores artistas e produtores conheçam nosso trabalho”, reflete.

Momentos memoráveis
O palco reserva surpresas. Måhrcia lembra de uma vez em que caiu e precisou ser retirada de cena porque o figurino era muito apertado. “Tive que ser puxada para fora para poder rolar, abrir a roupa e levantar. Todos na cena tiveram que improvisar com o riso que tomou conta do elenco”, conta. Ela comenta de outros acontecimentos marcantes. “Uma vez na troca de roupa uma colega muito irritada colocou a peruca ao contrário brigando com a equipe que tentava montar o personagem com ela. A cena que era uma briga não aconteceu conforme o planejado, passamos até o final da peça revertendo o acontecido para fazer a finalização dramática. Já quebrei um lustre no meio da apresentação também, estilhaços de vidro para todo o lado, verifiquei se todos estavam bem improvisando o texto até voltar para o roteiro e finalizar”, diz.
Wellington se emociona ao lembrar de momentos memoráveis na carreira. “Coleciono vários momentos memoráveis na minha carreira, seja conhecendo minhas referências pessoalmente e até trabalhando com vários ídolos em lugares incríveis. Acho que um dos momentos que mais me orgulho foi o de um menino que foi num show e ele agradeceu por ter feito ele esquecer um término difícil que recentemente tinha passado”, conta.
Angélica jamais esquecerá o dia em que dividiu o palco com uma inspiração no humor. “A oportunidade de dividir o palco com o Paulinho Gogó e fazer ele rir das minhas piadas será sempre uma lembrança boa no meu coração”, revela.
Ela também relembra de momentos incomuns com o público. “Acho mais inusitado quando alguém vem falar comigo no fim do show, contando que se identificou de alguma forma com o texto e que a partir dali com certeza ia ver as adversidades com outros olhos”, menciona.
Rui relembra um show em que descobriu um casal de “amantes” na plateia e transformou a situação em um dos momentos mais engraçados da noite. “Nas interações sempre acontece de aparecer algo inusitado, uma vez eu pedi para o público quem era casado, depois pedi quem era solteiro e reparei que um “casal” a mulher levantou a mão no solteiro, e o rapaz levantou no casado, brinquei que eram amantes e realmente estavam de arte”, comenta.
O processo criativo
Cada humorista tem sua própria forma de criar. Måhrcia brinca com vozes e observa interações humanas. “Gosto de criar personagens a partir da brincadeira com a voz e desta ir criando enredos de cena, relações com pessoas e objetos. As piadas são planejadas e ensaiadas, mas sempre nas apresentações é que elas ganham ‘fôlego’, respiram sozinhas. Com a reação do outro é que o tempo dela na cena se configura melhor. Eu também gosto muito de criar a partir de um jogo de ideias com pessoas que converso e troco experiências/vivências”, observa.
Wellington mescla fatos reais com situações fictícias. “No meu show eu falo muito sobre mim, de como eu vejo o mundo sendo quem eu sou e o que vivi (ser descendente de judeus, ter nascido na fronteira com o Uruguai, relacionamentos). Muito do meu material é fictício. Muitos comediantes se inspiram em histórias e coisas que aconteceram em sua vida, entretanto meu estilo é mais como uma junção de palavras e situações que eu crio na minha cabeça e acho que podem ser engraçadas no palco. Então se eu conto uma história no palco, ela pode (ou não) ser mentira”, afirma.
Angélica transforma suas vivências em piadas. “Crio minhas piadas através da minha vivência, que conta a história de uma mulher divorciada em busca de um novo amor”, aborda.
Barbosa registra premissas ao longo do dia e constrói piadas a partir delas. “Toda premissa de piada que eu tenho, eu paro o que estou fazendo e anoto, premissa é o assunto da piada, é a ideia principal da piada. Depois de anotada eu vou acrescentando o máximo de piadas na história, até fechar com o punsh, que é a piada final. Ultimamente tenho abordado bastante assuntos nostálgicos falando de antigamente e da geração de Enzos e Valentinas”, indica.

Planos para o futuro
Os comediantes estão cheios de planos. Måhrcia reabrirá sua escola de teatro e deseja levar suas peças para turnê. Wellington sonha em criar um show sobre história e política. “Como falo muito sobre história e política na internet, pretendo criar um show com essa temática. Meu maior projeto e ambição é fazer um show de comédia sobre a história do Brasil ou do Rio Grande do Sul”, conta.
Angélica se prepara para sua estreia solo e deseja rodar o Brasil com ele. Já Barbosa investe nas redes sociais para expandir seu público e consolidar sua carreira. “O futuro é consequência do que faço no presente, ando trabalhando as redes sociais para conseguir um público alto e com base nisso levar o público para os shows. É um processo que pode levar anos, como também pode acontecer de uma hora para outra, mas sinto que já estou preparado”, sustenta.
Conselho para aspirantes a comediantes
Todos concordam que o segredo é experiência e originalidade. “Leiam, assistam a espetáculos e vivam!”, diz Måhrcia. Wellington enfatiza que originalidade é essencial. “A regra de ouro é: Não copie piadas. Se já ouviu uma história, uma piada ou alguém te contou – ela não é sua. Originalidade é tudo na comédia stand-up. Também é importantíssimo saber os conceitos básicos da estrutura da piada (sim, há uma literatura sobre como escrever humor) e estudar estrutura de texto é primordial. E não é só por ser o “palhaço da turma” que você será, necessariamente, um humorista. Os comediantes não testam o microfone, é o microfone que testa os comediantes. O resto se aprende no caminho, passando vergonha no palco”, reitera.
Angélica aconselha: “Comece agora, nunca é cedo nem tarde demais”. Rui reforça a importância das redes sociais para conquistar espaço. “Trabalhe de forma sem visar lucro e sim visibilidade, que aos poucos as oportunidades vão surgindo”, conclui.