Casos recentes de linchamento virtual mostram que é preciso ter saúde mental para navegar na internet. No mês de prevenção ao suicídio, falar sobre a cultura do cancelamento é imprescindível
As redes sociais parecem inofensivas. Na palma da mão, pelo smartphone ou na tela de um computador, a comunicação se torna fácil entre pessoas de qualquer lugar do mundo. Mas nem tudo é tão simples como parece.
No último mês, um adolescente de 16 anos tirou a própria vida após publicar vídeo em rede social e receber comentários ofensivos. O caso ganhou repercussão porque a mãe de Lucas Santos é Walkyria Santos, cantora conhecida no país.
Outro caso foi o da jovem Lara da Silva, que ficou conhecida aos 12 após um vídeo de sua briga na saída escola. A frase “já acabou, Jéssica?”, pronunciada pela adolescente, se tornou viral na internet. Após isso, ela sofreu bullying e precisou passar por tratamento psiquiátrico, além de ter abandonado os estudos.
Internet não é parâmetro de comparações
É preciso ter saúde mental para navegar no mundo virtual. Segundo a psicanalista Jane Krüger, no Instagram, Facebook, Tiktok, entre outras redes, os internautas costumam expor apenas o lado bom de suas vidas. “Um momento no restaurante, viagens, instantes de alegria. Às vezes, interpretam erroneamente como se fosse a vida inteira da pessoa, esquecendo o preço que esta pagou para ter essas conquistas, não vê, nem sabe das dificuldades que enfrentou, e isso não vai aparecer nas redes”, destaca.
Jane pontua que o ideal é não fazer comparações, pois cada um tem a sua própria história, traumas, dores e isso não está em evidência nas mídias. “Minha dica é, se for para se comparar com alguém, compare-se consigo mesmo. Quem você era um ano atrás? Há cinco, dez anos? Uma reflexão assim mostrará verdadeiramente o quanto você conseguiu se desenvolver e crescer, provavelmente terá orgulho do que conquistastes nos últimos anos e poderás até mesmo se dar um ‘tapinha ‘nas costas e dizer que valeu a pena”, realça.
Dessa forma, a analista sublinha que é possível uma pessoa empreender as melhorias que ainda precisam ser realizadas e assim, ter orgulho de si mesmo, da sua história e conquistas. “Isso, asseguradamente, promove a saúde mental e o bem-estar do indivíduo”, esclarece.
Cultura do cancelamento e linchamento virtual
Não há como negar, a internet é um espaço com importantes discussões sobre assuntos relevantes. Quando alguém pratica algo considerado ‘errado’ perante a um grupo, entretanto, pode-se ocorrer o linchamento virtual, que nada mais é do que punir e fazer justiça, principalmente por meio de comentários e mensagens. Por trás das telas podem ocorrer ameaças, xingamentos, ofensas, humilhações, dentre outras formas de “condenações”, que também são chamadas de “cancelamento”.
Conflito de opiniões e crenças diferentes sobre o que é certo e errado tem causado vítimas no mundo cibernético. “Quando vejo uma pessoa com muito ódio no coração é porque tem ressentimentos. Ela vai refletir no mundo aquilo que é no seu interior: alguém infeliz, que já viveu inúmeras situações adversas, tem traumas e não conseguiu resolver isso direito. Ela não está de bem com ela mesma e nem com a história dela. Daqui a pouco já se sentiu cancelada em algum momento da vida”, pontua Jane.
Consequências difíceis de lidar
A psicanalista enfatiza também que o ódio está muito relacionado com o amor. “É uma pessoa que tem muita vontade de ser amada, desejo de ser acolhida, mas de alguma forma não foi. Ela se sente injustiçada e vítima de alguma coisa. E como ela tem esse desejo de amor mas não foi amada ou não consegue amar como gostaria, então dá-se o ódio”, explica.
Se quem promove o ódio está com problemas emocionais, quem é “cancelado” também sofre consequências difíceis de lidar. “A gente vê que as redes sociais, hoje, são quase como se fossem um vulcão que está prestes a entrar em erupção. Qualquer coisa o povo já começa a explodir. O cancelamento é quase uma forma de assassinato. As pessoas pensam que a gente pode matar só com uma arma, mas você também mata com palavras. Muitas sentem-se extremamente machucadas com isso, principalmente se elas tiverem uma fragilidade e não forem maduras emocionalmente”, ressalta.
Como parar a erupção?
A internet começou a alcançar mais usuários no Brasil nos anos 90, sendo uma tecnologia relativamente nova. A população está se adaptando ao mundo on-line e descobrindo como agir da melhor maneira. Por isso, a educação é um dos pilares principais para mudar esse quadro. Jane acredita que é preciso começar a cultivar as boas práticas no mundo virtual a partir das crianças, dos adolescentes nas escolas e dos jovens. “Falar sobre o amor à vida, ao ser humano, independentemente de quem ele é e do que ele pensa. Cada uma dessas pessoas que estão tão preocupadas em fazer justiça no mundo deveria iniciar dentro de si, começando a julgar a si mesmo”, acredita.
Efeitos psicológicos do cancelamento
A profissional esclarece que quando uma pessoa é cancelada, ela pode ter um problema dentro da sua mente, buscando entender o que fez de errado. “Às vezes vêm com palavras horríveis, como costuma acontecer com famosos do Brasil e de fora. Uma das artistas disse que sentiu uma vergonha pública muito grande, como se quem a cancelou estivesse pedindo para ela se matar”, exemplifica.
Para Jane, buscar a aprovação dos outros é natural do ser humano. “Querendo ou não, nós nos importamos se os outros gostam da gente, a gente quer que gostem. E de repente saio e vejo que tem milhares de pessoas que me odeiam, que querem que eu desapareça, que não querem me ver mais. Então se cria essa sensação de vazio”, frisa.
Cada indivíduo, de acordo com a psicanalista, vai reagir às críticas de forma diferente, segundo sua saúde mental, psíquica e o equilíbrio emocional de cada um. “Se a pessoa for mais sensível ela pode entrar em uma depressão, pode acontecer um estresse pós-traumático e tudo isso vai se repercutir no físico também, porque a saúde do corpo é completamente ligada à mental”, frisa.
Opinião x discurso de ódio
Normalmente os discursos de ódio na internet vêm com a justificativa de liberdade de expressão dos pontos de vista. As concepções de cada ser humano sobre o mundo são subjetivas. “Opinião, segundo a filosofia, é uma ideia confusa acerca da realidade, que se opõe ao conhecimento verdadeiro. As pessoas acham que a delas é uma verdade, mas não conseguem perceber que a opinião é só o pensamento delas e o que o pensamento, na verdade, não quer dizer um conhecimento verdadeiro”, expõe.
Segundo Jane, essa necessidade de expor opinião, custe o que custar, como se fosse verdadeira, vem com essa arrogância e quase fazendo justiça social. “Não é porque posso opinar, que tenho liberdade de matar. Mato com as minhas palavras, apunhalo a vida do outro. A gente sabe que tem casos que a pessoa foi de tal forma atingida, que nunca mais conseguiu nem trabalho. Então imagina como isso é, de fato, um assassinato, que eu destruo a vida do outro”, conclui.