Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade, que a retificação de prenome e gênero poderia ser realizada sem a necessidade de autorização judicial, laudo médico ou comprovação de cirurgia de redesignação sexual. Dois anos após a decisão, 290 gaúchos já registraram a troca em cartório. Em Bento Gonçalves, foram cinco averbações de alteração de prenome. Pela passagem do Dia da Visibilidade Trans, comemorado no dia 29 de janeiro, a reportagem do Semanário conversou com duas delas, um homem trans e uma mulher trans, para sublinhar a importância desta conquista, bem como de outras mudanças em curso, e as dificuldades ainda enfrentadas pela população LGBTTQ+.
O relato de Tainan
Como que predestinada, a identidade adotada por Tainan Coimbra, 25 anos, após alterar no Registro Civil seu prenome e gênero, já havia lhe sido designada muito antes da retificação, quando ele ainda nem havia nascido. Como lembra, era assim que sua mãe pretendia lhe batizar. Porém, embora ela o considera-se um nome unissex, seu pai não estava tão certo disso, e ao final, optaram por adaptá-lo por Tainá.
Cerca de 23 anos após a escolha materna, o filho retirou por fim o acento agudo e retornou o “n”, para resgatar o nome escolhido pela mãe, definindo assim sua identidade como homem. Conforme ele conta, essa foi uma forma que encontrou de homenagear o apoio familiar que teve durante todo seu processo de descobertas e transformação. “Acho que nenhum outro nome teria tanto significado como este. Descobri-me duas vezes — a primeira, quando por gostar de meninas me considerei homossexual, e na segunda, quando encontrei o que realmente era, um homem trans —, e em ambas tive todo o apoio da minha mãe. Nada mais justo que deixar o nome que ela tanto queria”,explica.
Duas revelações
Logo ao despertar da cirurgia, no dia 22 de maio de 2017, a primeira ação de Coimbra foi tatear o tórax. Apesar da dor e do entorpecimento pós-operatório, o sorriso aberto estampava o que ele define como uma “sensação de vitória e um grande alívio”. Por anos convivendo com disforia de gênero, termo técnico para o desconforto em relação às características físicas que remetiam ao gênero ao qual lhe foi atribuído ao nascer, finalmente estava em paz consigo mesmo.
Segundo conta, embora não entendesse esse sentimento e tampouco soubesse que ele tinha nome ou explicação, a existência dos seios era algo que o angustiava desde sempre. “Os peitos me incomodavam muito. Eu não entendia o porquê, mas simplesmente não me sentia bem. Usava top e evitava até sair de casa, pois não queria que eles ficassem visíveis. Então não tive medo da cirurgia. Eu necessitava retirar os seios, pois aquele não era eu”, destaca.
Essa sensação de estranhamento, no entanto, já vinha antes mesmo do desenvolvimento dos peitos. Segundo relatos da sua mãe, já na infância era possível perceber que Coimbra não se encaixava em seu jeito de ser no que se “esperava de uma menina”. “Eu sabia que não me encaixava, mas relutei bastante antes de me pensar lésbica. Então só aos 15 me assumi, mas isso vinha de muito antes. Quando contei para minha mãe ela disse que não era novidade. Que quando criança, eu sempre chorava quando me colocavam saia ou vestido, e só parava quando tiravam e me deixavam de fralda”, lembra.
Mesmo tendo se assumido como lésbica, Coimbra, no entanto, ainda não se sentia bem. A sensação era de que alguma peça seguia sem se encaixar. Foi ocasionalmente, já com mais de 20 anos, que ao se deparar com uma entrevista de Tarso Brunt na televisão, que começou a compreender melhor quem ele era. “Assumi-me como lésbica para minha família, pois é o que pensava que era, mas segui me sentindo mal. Foi ao ver o Tarso que descobri o que era uma pessoa trans. Na hora, soube que eu era assim”, destaca.
Uma vez certo de quem era, ele se assumiu pela segunda vez: agora como homem trans. Munido com algumas reportagens sobre o Thammy Gretchen, que na época estava em processo de transformação, explicou para a mãe o que ele era e o que pretendia fazer. Novamente a recepção materna foi calorosa, mas com uma condição. Ele deveria contar sua decisão também para o avô e para seus padrinhos.
Foi então que, durante um almoço de Páscoa, ele revelou o que pretendia à família. “Fui comedido, em tom de brincadeira disse que ia começar o tratamento hormonal, mas todos notaram que era sério. Meu avô sentou ao meu lado na mesa, e meu ‘dindo’ no outro lado. Meu dindo comentou ‘Capaz, então tu vai ficar igual o Thammy’, e eu respondi que sim. Meu avô, então com 84 anos, me pediu como eu seria chamado. Eu respondi ‘Tainan’, e ele me chama assim desde então”, relata.
“Até porque eram nomes semelhantes, em uma janta de família, minha mãe se confundiu e me chamou de Tainá. Meu avô então a corrigiu, rapidamente. ‘É Tainan. É ele!
A importância do nome
Adorador das fotos “de antes e depois”, desde a primeira injeção hormonal, Coimbra fazia registros de seus avanços e se admirava no espelho em busca de sinais de mudança. Após se ver completamente transformado e satisfeito com sua aparência, entretanto, ainda restava algo para concretizar sua identidade: o nome.
Em 2018, a notícia de que o Supremo Tribunal Federal havia reconhecido o direito de transgêneros e transexuais pedirem a retificação de prenome e gênero, imediatamente, entro em contato com o Cartório de Registro Civil solicitando a alteração. Por se tratar de uma normativa nova, no entanto, o serviço só passou a ser oferecido alguns meses depois. Após muita insistência, em junho de 2018, um ano após sua transformação, o primeiro bento-gonçalvense a mudar seu prenome, tinha agora uma identidade que condizia com o rosto que via no espelho. “É uma conquista muito importante. Eu andava com o cartão social, que a gente tem direito de fazer, mas ele só era válido dentro do Rio Grande do Sul. Para entrar na Argentina tive de apresentar meus documentos e lá estava ‘Tainá, sexo feminino’. Era um documento que mostrava alguém que não era eu”, explana.
“Tem gente que brinca e me pergunta por que fiz a transição se eu fico com homens. Isso não tem nada a ver. O jeito que olho no espelho e o que me identifico, não tem relação nenhuma com o tipo de pessoa que me atrai”
O relato de Verônica
A mãe de Verônica Trevisan foi quem escolheu o nome da filha quando ela nasceu. E depois de mais de duas décadas, coube a ela outra vez, escolher uma nova identidade. A primeira opção foi Maristela, a qual não foi bem aceita. A segunda foi Verônica.
Desde os sete anos, ela já sabia que não era menino. Embora não tivesse ideia do que era, tinha certeza que sua forma de ser não condizia com o que se esperava socialmente de uma pessoa do sexo masculino. “Quando nascemos, seja em um corpo de menina ou de menino, ninguém nos pergunta o que gostaríamos de ser. Eles te definem pelo órgão genital e esperam que você seja isso pelo resto da vida. Com base nisso, a sociedade te impõe certos papeis, e não demorei a perceber que eu não poderia cumpri-los”, pontua.
Entre os 12 e 13 anos, no entanto, com a mentalidade mais formada e com o contato com novas informações é que começou a entender melhor quem ela era. “Um dia, vi uma entrevista onde a Nany People explicava seu processo de transformação. E aí descobri o termo com o qual me identificava. Eu era uma mulher trans”, sublinha.
Embora, segura de si, nunca tenha sentido nenhum desconforto acerca de seu corpo ou de quem era, o processo de transformação foi lento e gradual. Começou por usar calças femininas acompanhadas de camisetas largas. Passou então, para calças e camisetas femininas mais neutras. E assim, foi incrementando. Usava brinco, mas não maquiagem. Se usava maquiagem, não usava joias. Até que um dia, deixou de se importar. “Embora seja algo que assola muitas pessoas trans, eu não sofri muito com disforia de gênero. Nunca entrou na minha cabeça que eu tinha que ter essa ou aquela característica para me identificar como mulher. Sempre fui, independente de como a minha aparência estava”, ressalta.
Da mesma forma que a mudança física, sua revelação para a família também se deu naturalmente. Um dia, enquanto estava no sofá ao lado da mãe, que estava vendo televisão, ela simplesmente contou que se identificava como mulher. Ao pai, não contou nada. E, enquanto, ia se transformando, ele nunca disse nada que a pudesse ofender. “Assumir-se faz parte da cultura LGBT, pois héteros não precisam fazer isso. Então é algo bonito, que faz parte de nossa história, mas não vejo como necessário. Por isso, contei para minha mãe, mas não para meu pai. E, embora ambos venham de uma cultura fechada de uma criação na colônia, não tive nenhum problema. Meus pais são a representação do amor acima de tudo”, exclama.
“Ser trans é estar sempre atenta”
Em 2019, 124 pessoas transexuais foram assassinadas no Brasil, o que o coloca no topo da lista do dossiê “Assassinatos e violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2019”, feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Por outro lado, segundo pesquisa interna divulgada pelo RedTube, um dos sites pornográficos mais populares do mundo, o país também é o que mais pesquisa por conteúdo sexual desse gênero.
Para além do campo das pesquisas, essa realidade ambígua passa pelo cotidiano e é sentida na pelas pessoas transexuais, conforme conta Verônica. “Percebemos essas duas facetas na rua. Ao mesmo tempo em que alguém me xinga ou me olha feio pela frente, quando dou as costas, ela olha minha bunda. Ao mesmo tempo que alguém dá em cima de mim, se eu abrir a boca para reclamar, a pessoa pode me espancar ou me matar”, destaca.
Apesar de se considerar uma pessoa privilegiada por ter contado com o apoio dos pais, nos ambientes públicos, assinala, mais de uma vez passou por situações de preconceito, seja velado ou não, ou se sentiu desrespeitada. “Quando se é LGBT é preciso viver 24 horas por dia de escudo em punho. Recebemos muita coisa na rua, de conhecidos e na internet, onde com um click podemos ser humilhadas. Quanto a Bento, noto que é uma cidade preconceituosa, mas que não quer essa alcunha. As pessoas não costumam falar nada ruim na tua cara, mas ofendem quando saio de perto, ou olham estranho quando entro em um restaurante, por exemplo”, pontua.
Ela acredita ainda que além do preconceito, as pessoas, no geral, ainda têm dificuldade em compreender tudo o que envolve a cultura e a vida dos transexuais. Neste sentido, diz que mesmo sua aparência costuma ser incompreendida. “Ainda há a ideia de que se não fiz cirurgia, não coloquei seios ou alterei a voz, sou um ‘gay afeminado’. Mas se acreditamos que as mulheres podem ser o que querem, eu como mulher trans posso optar em não ter cabelo longo ou voz feminina. Não há relação entre aparência e gênero. Posso estar de barba e me considerar uma mulher trans igual”, exalta.
Direito ao nome e outras conquistas históricas
Igual à escolha do nome ou sua transformação, a decisão de Verônica em buscar a retificação de seu prenome e gênero também se deu de forma espontânea. Mesmo que já pensasse nisso antes, foi pela entrada no novo Governo, em 2019, que resolveu correr atrás disso, uma vez que tinha medo de que os direitos LGBT pudessem ser limitados.
Em março de 2019, após uma série de documentos recolhidos e apresentados, ela entrou na lista dos cinco bento-gonçalvenses a garantir essa conquista. Um direito que para ela significa a garantia de ser reconhecida como quem ela é. “A questão do nome não é importante para que eu me sinta amparada pela Justiça e pelo sistema e para que eu possa me sentir parte de uma comunidade, e que minha existência seja reconhecida”, sublinha.
Para Verônica, além do direito à retificação de prenome e gênero, conquistas mais recentes como a criminalização da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, aprovada em junho de 2019 pelo STF, e a redução para 18 anos da idade mínima para cirurgia de redesignação sexual aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), no começo de 2020, são amostras de que a luta ganha força, justamente nos momentos de maior afronta. “Como uma afronta ao Governo, hoje temos um levante da população mais jovem que percebeu o quanto ainda existe machismo e preconceito na sociedade. Embora sejam poucas conquistas em mais de 50 anos de história trans, estamos conseguindo algumas mudanças rápidas agora. E isso nos dá segurança”, exalta.