Nos primeiros oito meses de 2021, o Conselho Tutelar do município realizou 60 atendimentos. O número é 66,7% maior do que o registrado em todo o período de 2020
Os números de crime sexual contra crianças em Bento Gonçalves cresceram significativamente. Segundo dados do Conselho Tutelar, em 2019 foram 39 atendimentos deste tipo de caso e, em 2020, foram contabilizados 36. Já 2021 registrou, até agosto, 60 abusos praticados contra menores de idade, um percentual de 66,7% maior do que no ano anterior.
O aumento, segundo a conselheira Silvana Lima, pode ser por conta da pandemia. “As crianças não estão indo tanto para a escola. Devem ter mais casos. Esses são os que a gente vai recebendo”, acredita.
As denúncias de crime sexual contra a criança e adolescente devem ser registradas na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). Alguns procedimentos precisam ser seguidos em cada órgão competente. “Quando a gente recebe a comunicação, não conversamos com a criança, mas com a família, a não ser que ela fale espontaneamente. O que nos é relatado a gente encaminha para a delegacia para fazer o boletim de ocorrência e direcionamos um ofício para o fluxo das violências: Saúde, Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), Sedes (Secretaria de Esportes e Desenvolvimento Social) e para o Ministério Público”, explica.
Quando vem a comunicação ao Conselho, é porque a criança já relatou em algum lugar. “Se na escola, ela quiser relatar para os professores, eles têm que colher as informações, não tem que perguntar nada, nós não podemos perguntar, questionar ou induzi-la a falar. Porque se a gente começar a indagar a criança, talvez vamos induzir ela a falar algo. Temos que permitir que ela fale o que está sentindo, mas espontaneamente, sem ser pressionada”, pontua.
Toda denúncia é tratada pelos profissionais como suspeita, não como violência concretizada. “A única que se caracteriza é quando existe a penetração, mas, a maioria dos abusos que a gente recebe na nossa cidade é o passar a mão, apalpar, os atos libidinosos que mais tem e que não se consegue encontrar material para poder acusar o abusador. É uma perícia psicológica, a criança tem que passar por todo esse processo para fazer o procedimento correto e, muitas vezes, leva tempo”, destaca.
Essa demora é predicial para o menor que sofreu o abuso. “Além de ser vítima da violência, a criança é retirada da família porque não se tem provas o suficiente para retirar o abusador. Ela tem que sair do núcleo familiar e na lei é o abusador que precisa ser retirado, mas está acontecendo o contrário”, explica Silvana.
A conselheira cita também que muitas vezes a família, principalmente as mães, não acreditam nos filhos. “As pessoas acham que criança mente, mas quando ela fala algo que não é rotineiro na vida dela, de que estão passando a mão nela, falando em coisas de sexo e que não é normal para uma criança, a gente tem que ter um olhar diferente”, alerta.
Silvana cita que todas as comunicações de suspeita de violência costumam ser com alguém do núcleo familiar. “Ou é um parente ou o pai, ou avô. É difícil ser uma pessoa estranha, é sempre alguém conhecido. Pode ser um vizinho, mas ele sempre está visitando a família”, realça.
Ademais, a profissional salienta que os pedófilos não estão em busca de gênero, mas todas as crianças ou adolescentes podem ser vítimas. “Uma vez se pensava que só meninas eram violentadas, mas hoje os meninos também estão sendo”, assegura.
Consequências psicológicas
Muito mais do que problemas físicos, esse tipo de abuso pode causar diversas consequências psicológicas. Segundo a mestre em psicologia clínica e professora do curso de Psicologia da Uniftec de Bento Gonçalves, Patricia Dotta, a criança pode desenvolver um transtorno na autoimagem. “Na sua personalidade, na identidade, ansiedade, depressão, problemas na aprendizagem, e pensando em uma questão psicopatológica”, explica.
Os traumas tendem a causar um sentimento de menos-valia e culpa. “Muitas vezes elas se sentem culpadas pelo que aconteceu e é uma questão muito séria, justamente porque a criança está em desenvolvimento tanto emocional, quanto cognitivo. Então, o impacto que isso gera até de um ponto de vista neurológico é gigante”, pontua a psicóloga.
As consequências que o abuso sexual pode causar vão além da infância, mas se tornam uma bagagem para a vida adulta. “Podem impactar no ambiente de trabalho, na escola, fazer que uma pessoa tenha bastante dificuldade em um relacionamento afetivo, justamente porque a violência familiar foi o que provocou isso. Uma das coisas mais importantes é que quando a criança sofre o abuso é em um ambiente intrafamiliar, o abusador é conhecido e geralmente é pai, padrasto, avô e tio, vários estudos mostram isso”, sublinha Patricia.
Um dos aspectos a serem considerados pela família é o apoio e acolhimento que a vítima precisa receber. “O que de fato traumatiza essa criança é ela dizer o que ocorreu e falarem que não foi isso que aconteceu, desmentem. Isso gera consequências terríveis que vão afetar um ponto de vista físico, cognitivo, psicológico e social. A gente vai desde distúrbios do sono, alimentação, doenças psicossomáticas, elas ficam com febre, alergia, agressividade, ansiedade, comportamento hiperssexualizado, porque a criança que viveu esse episódio tende a se comportar de um jeito muito sexual para a idade dela. Além disso, autoagressão, no futuro uso de drogas, suicídio, álcool”, destaca.
A docente menciona que nesses casos, é imprescindível o encaminhamento para atendimento psicológico, pois ele vai ressignificar o que aconteceu. “Vai ajudar e explicar para a criança que ela não tem culpa e que não necessariamente irá acontecer de novo. Fazer todo um trabalho de escuta e de acolhimento para que ela elabore esse trauma. A psicoterapia vai desconstruir esses traumas, essa experiência negativa e vai propor uma outra forma de enxergar aquilo que foi muito traumático. É como uma cicatriz, ela nunca vai sair, mas vai ficar menos doída”, frisa.
Patricia ressalta que a educação pode prevenir esse tipo de situação. “Ensinar as crianças que ninguém pode encostar, pode mexer, tirar fotos, e quando isso acontecer, orientar que tem que contar. Dizer que isso é seu e que ninguém pode olhar”, conclui.
Alerta aos pais e responsáveis
O estupro de vulnerável é caracterizado, por lei, quando há conjunção carnal (ato sexual concluído total ou parcialmente) ou ato libidinoso (tocar áreas erógenas, os órgãos genitais da vítima utilizando os dedos ou órgão sexual, masturbação, sexo oral e anal, entre outros) com menor de 14 anos. Nestes casos, a pena é de reclusão de oito a 15 anos. Além disso, estupro é caracterizado pelo ato de constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. No segundo caso, a reclusão pode ser de oito a 12 anos quando a vítima é menor de 18 anos e maior de 14.
A violência também é crime e deve ser denunciada quando não há contato físico, por meio de diálogos de cunho sexual, violência sexual verbal, telefonemas obscenos, violência sexual virtual, exibir imagens ou vídeos pornográficos para crianças ou adolescentes, exibicionismo (quando o violentador sente prazer em expor o corpo nu ou apenas os genitais para a criança) e o voyeurismo (neste caso o abusador tenta obter prazer por meio da observação da nudez de uma criança).
Quando casos como esse ocorrem, a criança ou o adolescente podem demonstrar medo e insegurança, por isso é importante que os responsáveis estejam atentos aos sinais. “Medo de escuro, de ficar em lugares fechados, não quer mais visitar se ela sofreu violência na casa de um familiar, não gosta de ficar próxima àquelas pessoas. Começa a ter regressão de comportamento, fazer xixi na calça, até cocô. Passa a ter problemas na escola. Tem vários sinais, ela baixa o nível de autoestima, fica com vergonha, se culpa, tem comportamento agressivo. São vários sintomas apresentados”, ressalta Silvana.
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