Conhecer alguém especial, se apaixonar e viver uma vida a dois é o sonho de muitas pessoas, porém, para as vítimas de violência doméstica a palavra companheiro perde seu sentido. Eles tornam-se a pessoa que elas mais temem. Chegar em casa passa a ser um momento de terror.
O assunto chegou nas redes sociais através de influenciadoras digitais como a Júlia Tolezano, conhecida como Jout Jout. Ainda em 2015, ela publicou o vídeo “Não tira o batom vermelho”, que traz histórias de relacionamentos abusivos, mostrando como a violência vai muito além da física. De lá para cá, o canal da jovem cresceu e o vídeo já ultrapassou 3,5 milhões de visualizações. O audiovisual ainda causa grande repercussão e rendeu muitos debates e outras produções. Séries e filmes também vêm abordando o assunto. A reportagem do Jornal Semanário ouviu duas mulheres que passaram por isso e contamos seus relatos. Trocamos os nomes para preservar a identidade das entrevistadas.
Verônica, 53 anos, conviveu por três anos com o homem por quem se apaixonou. Mas ela demorou para perceber que seu relacionamento era abusivo. Foi só no momento em que a mulher descobriu que ele tinha um caso extraconjugal que começou a prestar atenção nos sinais. “Quando fiquei sabendo, coloquei as roupas dele para fora de casa. Então a violência psicológica aumentou. Ele me perseguia, me agredia na rua. Começaram as ameaças de morte. Eu já sabia da rede de apoio e proteção à mulher e fui buscar ajuda”, diz.
Além disso, o ex-companheiro começou a procurar as amigas e colegas de Verônica para fazer ameaças. “Eu disse que não queria mais aquele relacionamento, que era para seguir com a vida dele. Ele foi intensificando as abordagens. Eu pedia socorro na rua. Falei que não iria ceder. Ele dizia que ia me matar caso não retomasse o namoro”, lembra. A surpresa dela foi quando resolveu registrar o primeiro boletim de ocorrência contra ele: o homem já tinha 16 registros por Maria da Penha. “Ele já havia sido preso por agredir a mãe dos filhos dele”, revela.
Em uma dessas agressões na rua, uma câmera gravou a ação. Verônica recebeu as imagens na sua caixa de correio, em um pendrive. Faz nove meses queela se separou dele. Porém, durante sete desses, ela conviveu com ameaças e agressões. Foi somente depois que o homem foi preso que a situação melhorou. Após dois meses encarcerado, ele está de volta às ruas, porém não a procurou mais. “O juiz me ligou no dia em que ele foi solto. Perguntou se eu me sentia segura, que ele havia dito que não iria mais me perseguir. Quando saiu do presídio, ele fazia ligação restrita para o meu telefone, ainda comenta por aí que é louco por mim”, diz.
Mesmo que o homem não a procure mais, Verônica convive com medo. “Eu me mudei de bairro, não frequento lugares que sei que ele pode estar. Só em ver ele, me sinto mal. Sei os horários dele, o carro que tem. Ando sempre me cuidando. A gente tem que fazer a denúncia, não pode aceitar viver essa repressão. Consegui apoio da Coordenadoria da Mulher, atendimento psicológico, que foi essencial. Resgatei minha dignidade e sei que posso dizer não. Muitas mulheres têm medo. Eu acho que temos que lutar pela liberdade. No dia em que saiu na mídia o caso, recebi mensagens de outras pessoas contando como era conviver com ele. Sempre que vejo uma mulher que sofre violência, converso e aconselho ela”, salienta.
Agora, Verônica fica alerta quando algum homem se aproxima e observa o comportamento do sujeito para não cair em outra “armadilha”, como ela define.
“Era a minha vida que estava em jogo”
Juliana, 46 anos, vivia um ciclo de violência já na casa dos pais. Aos 15 anos ela decidiu morar com seu namorado para ter uma vida diferente. Porém não foi isso que aconteceu. O amor da sua vida também era um homem agressivo e controlador. A primeira atitude dele foi a proibir de terminar os estudos. “Sofria tortura psicológica e não queria contar para minha família que aquele relacionamento não estava bom”, relata.
O sonho dela era casar vestida de noiva. Quando o dia chegou, ela recorda que ele nem a tocou. Como trabalhava com construção, muitas vezes, ele passava parte da semana fora de casa. O momento do retorno dele já era motivo de pânico para Juliana. Caso o companheiro encontrasse algo diferente ou fora do lugar, a acusava de ter estado com outros homens. “Eu queria fazer um curso profissionalizante, mas ele dizia que eu não tinha capacidade. Eu tinha que ter regras, horário para as refeições, para dormir. Tinha que ser perfeita e eu tentava ser. Chorava sozinha no banho, pois não queria contar para ninguém”, diz.
Depois de alguns anos de casamento, o marido decidiu que queria ter filhos. Juliana acreditou que aquela seria a solução para melhorar o casamento. “Quando engravidei, ele não me tocou mais. Eu me sentia rejeitada. Durante o dia, ele frequentava casas de prostituição. Quando chegava em casa, me acusava de ter aprontado”, recorda. Assim que a criança começou a chorar, ele dizia que a pior coisa da vida dele era ter sido pai, conforme relata a vítima. “Eu segurava tudo para mim, não queria falar nada para ninguém. Camuflava”, conta emocionada.
Juliana diz que a situação só foi piorando com o tempo. Mais filhos vieram e todos eram vítimas de tortura psicológica e agressões por parte do pai. Ela é autônoma e ele concordou que ela fizesse um curso na área e até construiu um espaço para ela trabalhar na casa onde residiam juntos, porém, durante o trabalho, ele constrangia as clientes e batia nas crianças enquanto a mulher estava atendendo. “Eu amo meu serviço. Ali eu sou uma pessoa feliz, converso, rio, me distraio, mas ele não aceitava”, diz.
O homem é alcóolatra e muitas vezes retornava para o lar embriagado. “Um dia chegou em casa bêbado e queria dormir comigo. Eu disse que não ia. Ele veio para cima de mim para me bater. A minha filha tinha 3 anos. Foi quando eu registrei uma ocorrência. Então veio a primeira ameaça de morte”, lembra consternada.
Ela conta que ele recebeu a intimação no bar, depois chegou em casa dizendo que, se ela não retirasse a queixa, iria a queimar dentro do próprio lar. Depois de muita pressão, ela desistiu de prosseguir com a denúncia. “Comecei a fazer curso e ele dizia que eu saia de casa para traí-lo. Se as crianças estavam vendo desenho que ele não gostava, desligava e televisão. Se elas demoravam no banho, desligava a luz. Dizia que o filho mais novo não deveria ter nascido”, acrescenta.
Conforme a filha foi crescendo – hoje a jovem tem 23 anos – ela também foi sendo torturada. Juliana relata que o pai queria controlar até que roupas a menina podia vestir. O filho mais novo, ele ameaçava bater até que o menino ficasse desfigurado. Os amigos do casal também foram se afastando, conta a vítima. “Eu pedia para Deus levar ele para longe”, confessa.
Buscando ajuda
Ela conta que as ameaças e agressões pioraram, até que ela decidiu dar um basta e começou a registrar boletins de ocorrência, há cerca de dois anos, depois de quase 30 anos de casamento. Foi então que as ofensas se tornaram mais intensas e mais humilhantes. “Conheci uma amiga e ia na casa dela para fazer janta, jogar carta. Voltar para casa era uma tortura, porque ele não aceitava que eu saia. Ele abria a janela no frio, trancava a gente para fora de casa, ligava o som alto durante a noite. Eu pedia Medida Protetiva de Urgência (MPU), mas era indeferida. Ele tentou abusar de mim, mas não registrei por vergonha”, diz.
Juliana lembra que ele também começou falar dela no bar e proferir ameaças na frente das clientes. “Por fazer as denúncias, me encaminharam para o Centro de Referência da Mulher que Vivencia Violência (Revivi). Não sabia que tinha esse apoio. Antes eu me sentia desamparada. Chegava no juiz e não saia a Medida Protetiva. Ele dizia que era para eu sair de casa, mas não tinha para onde ir. A gente já estava dormindo separados. Durante a noite, ele me mandava mensagem xingando. Ligava de madrugada para o meu pai me ameaçando”, relata.
A MPU somente foi deferida pelo judiciário após um episódio de graves agressões. Juliana conta que havia ido auxiliar uma amiga que estava doente. Ao chegar em casa, ele não a deixou entrar. Foi o filho que conseguiu abrir a porta, em um momento que o pai estava distraído. “Ele começou me bater, me pegava pelo pescoço, me jogava contra a parede. Chamei a polícia. Então saiu a decisão favorável do judiciário e ele teve que sair de casa. Mesmo assim continuava ameaçando”, sustenta.
Onde Juliana diz ter encontrado apoio foi na Delegacia Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam), no Centro Revivi e nas visitas da Patrulha Maria da Penha, programa da Brigada Militar. “Quando ele viu o carro da polícia na frente de casa, começou a parar um pouco. Mas falava para os outros que eu ia pagar caro. Pelas ameaças ele chegou a ser preso, porém ficou menos de uma semana. No dia da audiência, o juiz me disse que eu sabia que depois iria ser pior. Eu me senti totalmente desamparada. Agora com ele solto, continua falando que vai me matar, que eu tenho sorte de ter Maria da Penha. Tem dias que não sei para onde vou. Tenho muito medo. Se eu fizer outra denúncia, não sei o que vai acontecer. É torturante. O sistema é falho. A Medida Protetiva é só um papel e ainda demorei para conseguir. Era a minha vida que estava em jogo”, lembra.
Fotos: Elisa Kemmer