A relação familiar abusiva é difícil de ser identificada e mais ainda de ser enfrentada, causando consequências para a vida toda
Quando falamos em relacionamentos abusivos, a discussão muitas vezes se restringe às relações amorosas. No entanto, amigos, colegas de trabalho e mesmo familiares podem criar laços tóxicos. Esse cenário se torna ainda mais danoso neste período de isolamento social, em que a vítima convive com o abusador, muitas vezes, 24h por dia. Com a família acontece o primeiro contato social de uma criança e é, muitas vezes, a partir desse relacionamento que surgem os maiores conflitos, capazes de mudar a relação inteira ou até mesmo colocar um fim nela.
A psicóloga e psicanalista especialista em casos graves, suicídio e filhos de mãe narcisista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, Daniela Tremarin, 38 anos, explica que na maioria não é fácil identificar uma situação abusiva. Geralmente, a percepção se dá conforme a pessoa alcança um determinado grau de maturidade. “Isso porque essas famílias são manipuladoras, é feita de uma forma fugidia, não percebida devido à sutileza na fala. Há outros casos em que a loucura da mãe fica clara e assim, mais possível de se defender e identificar. Para isso é preciso observar a mãe, principalmente”, pontua.
Uma violência não é a física propriamente dita, há a verbal. Neste caso, o abuso é aquele em que não há diálogo possível, sempre uma conversa acaba em xingamentos e ameaças. “Identificamos esses abusos quando o filho aponta algo que ocorreu e haverá por parte da família uma negação. Esses pais humilham, baixam a autoestima dos filhos, jogam na cara que estão pagando tudo e dizem que são ingratos. Colocam seus filhos nas suas mãos, usam do controle e do poder sempre com desrespeito”, sublinha Daniela.
Antes eu podia fugir de casa durante o dia, mas agora é insuportável.
Frase mais dita por adolescentes vítimas em atendimentos psicológicos
É preciso prestar atenção a um ciclo que se repete. Primeiro, começam a ocorrer momentos de tensão motivados por algo sem significância. Em seguida, há incidentes de comportamento abusivo – xingamentos, ameaças e culpabilização são alguns exemplos. Depois disso, há reconciliação. A pessoa abusiva negará que pode ter feito ou falado qualquer coisa. Diz que o filho é ingrato e louco, que não sabe de onde tira o que ele vê. Ela é incapaz de assumir o que faz. Fazem mal e depois, por culpa, tentam reparar o que fizeram com amor e presentes. Começa uma fase de calmaria, pelo menos até o próximo momento de tensão, quando tudo recomeça. “Um ciclo que nunca acaba é o que confunde muito o filho. Essas pessoas possuem um transtorno Narcisista, do qual não conseguem se tratar e que os filhos, devido às consequências que deixam, é que precisarão de tratamento”, alerta Daniela.
Respeito mútuo deve prevalecer nas famílias
A psicóloga aponta que esses filhos tendem a autodestruição, consumo de drogas e álcool abusivo, procuram relações amorosas e amizade tóxicas. “Eles já vivem isso dentro de casa com os pais. Cortar-se ou tentativa de suicídio são comuns também, além de terem dificuldade de irem pra frente em sua vida, estudar e trabalhar, por exemplo”, observa.
Contudo, é preciso entender que abuso familiar não se caracteriza no auxílio às tarefas diárias, levar uma bronca esporadicamente ou ser repreendido. “Famílias que não possuem um relacionamento abusivo são famílias que sabem conversar, que mantém o respeito, não por imposição.
Quando é justo um filho compreende e os nãos dados serão aceitos, pois fazem sentido. Não há uma relação de submetimento e, sim, de respeito e escuta de todas as partes”, destaca a profissional.
Não há uma faixa etária específica para que a violência ocorra, basta a convivência familiar propriamente dita, mas é comum que esse funcionamento aconteça desde muito cedo para a crianças e ganha força a partir da adolescência. Há alguns fatores cruciais em uma relação desajustada. Uma mãe que não enxerga seu filho, não vê suas necessidades, pode ter um transtorno Narcisista. A presença de chantagem emocional, Síndrome do Ninho Vazio e não permitir que seu filho cresça, são exemplos que estão a serviço do abuso.
São pessoas que amadureceram às pressas, porém com cicatrizes enormes
Daniela Tremarin, Psicóloga e Psicanalista
Dito isso, o que fazer?
Em caso de menores de idade é preciso contatar o Conselho Tutelar. Já quando se trata de maiores, registrar um boletim de ocorrência é a opção. Daniela pondera que por se tratar de crianças ou mesmo adolescentes, denunciar os pais e sentir-se sozinho é uma situação difícil. Normalmente esses jovens tentam crescer rápido para sair o quanto antes de casa.
Pandemia
A psicóloga realça que durante a pandemia do coronavírus (de março até o momento), a procura/demanda de filhos que passam por essas situações aumentou 30%. “Minha clínica está cheia de adolescentes e mesmo pacientes adultos, hoje com marcas profundas desses abusos e maus tratos. Atualmente, sou especialista no atendimento a filhas de mãe narcisistas e, sim, neste período aumentou a procura por atendimento devido às famílias ficarem juntas dentro de casa. Como dizem os jovens, ‘antes eu podia fugir de casa durante o dia, mas agora é insuportável’, pondera.
Sabendo lidar com pessoas tóxicas
Primeira coisa a saber: não é responsabilidade sua de querer “desintoxicar” uma pessoa. Tudo tem seu contexto e seu preço. Pessoas tóxicas possuem comportamentos distintos e que merecem a atenção de profissionais da saúde mental. Por outro lado, é possível rejeitar sentimentos e pensamentos negativos, palavras, ações, comportamentos que podem influenciar no dia a dia.
Crie limites
A relação com uma pessoa tóxica deve ser reconhecida e desestimulada, porque mesmo durante o tratamento, ainda é possível não perceber os limites de aceitação do outro. Para uma pessoa tóxica, tudo é permitido. Tome cuidado de não fazer um movimento radical, como de exclusão, por exemplo, porque a pessoa sentirá que a sua influência não faz mais efeito. Busque o meio-termo.
Necessidade de ajuda
Uma relação saudável é impossível estabelecer neste momento. Ajude-a a procurar pessoas da área da psicologia que podem orientá-la neste sentido.Evite falar que ela é uma pessoa negativa ou tóxica.
Reconheça as relações de poder
Coloque limites no que chamamos de relações de poder, já que ela sente a necessidade de estar por cima sempre. Seja assertivo em relação à pessoa, evitando, por um lado, estimular o seu lado negativo, e por outro, não desrespeitá-la.
Não revide com o mesmo veneno
Uma pessoa tóxica tem problemas, não você. Saiba que o revide a alguém na mesma moeda não diminui sua violência nem ajuda em nada. Não ceda lugar ao medo, à manipulação, à violência, à tristeza.