Está na Constituição Federal: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. A diversidade religiosa também é assegurada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas, na prática, esse direito nem sempre é respeitado. Muitas pessoas precisam esconder sua fé com medo de sofrerem agressões ou até mesmo perderem oportunidades de emprego. Assim acontece com os adeptos da umbanda em Bento Gonçalves.
Em uma cidade predominantemente católica e que vê as denominações evangélicas se expandirem, o preconceito às religiões de matriz africanas vem crescendo. Lisiane Pires, a Mãe Lisi de Iemanjá, conta que já chegou a ser apedrejada por fazer um ritual para abertura de caminhos em local público. Moradora de Bento Gonçalves há sete anos, levou um choque de realidade quando chegou aqui, como ela mesma define. Em Porto Alegre, onde vivia antes, não enfrentava esse tipo de problema.
“A umbanda é a religião mais próxima da diversidade. A doutrina é baseada na paz, amor, caridade, humildade. Atendemos a todos que batem em nossa porta”, afirma Mãe Lisi. Apesar disso, muitos caracterizam os praticantes da religião como macumbeiros, pessoas que mexem com demônios. Termos pejorativos que não condizem com a realidade. “A denominação de diabo nem faz parte da nossa cultura religiosa. Somos um povo de tradição. Temos fundamentos que seguimos”, ressalta.
Ela já sofreu ameaças de vizinhos, que falaram que iriam colocar fogo e “furar a tiro” a sua terreira, como é conhecido o local onde acontecem as sessões. “Então precisei tomar uma decisão e fui buscar meus direitos. Resolvemos nos organizar e foi criado o Conselho Municipal dos Povos de Matriz Africana”, relata. Através do Conselho, os praticantes de religiões de matriz africana buscam políticas públicas para que possam viver sua fé sem precisar se esconder.
Anahí Cardoso de Miranda, a Mãe Anahí de Oxum, conta que antes eles não se mostravam, só tinha conhecimento sobre a existência da umbanda quem buscava uma casa de religião, mas grande parte das pessoas procurava ajuda, porém não falava sobre isso. Com as reuniões do conselho, ela sai montada, termo utilizado para o uso da vestimenta própria utilizada nas sessões. “Se andar paramentada no centro da cidade, as pessoas vão se afastando e abrindo o caminho, com cara de espanto. Parece que estão vendo o demônio na frente. Quanto mais a gente se mostra, mais o preconceito fica visível”, ressalta.
Outro problema enfrentado eram as denúncias dos vizinhos nos dias de sessão, que faziam a fiscalização da prefeitura interromper os rituais. Ela salienta que nunca sabe se vão conseguir terminar os encontros, pois a qualquer momento alguém pode interromper, seja por denúncias ou por concretização de ameaças recebidas por muitos dirigentes das casas de religião. “Temos a doutrina de acolher. A nossa diferença incomoda, aqui todo ser humano é bem-vindo”, relata Mãe Anahí.
Para ela, as pessoas acreditam no que ouvem falar, que se paga para fazer “trabalhos”, mas na umbanda nada é cobrado. A mãe de santo afirma que as pessoas têm uma concepção muito errada do que é a umbanda e muitas não aceitam dialogar. “Aqui a gente tem que se esconder, não pode ser visto fazendo uma oferenda em espaço público, pois corre o risco de levar um tiro. Isso já aconteceu com uma filha de santa minha, que foi corrida de uma encruzilhada por uma pessoa armada”, lamenta.
No trabalho, ela afirma sempre ter falado abertamente com colegas sobre sua religião, mas com o marido é diferente. Ele é montador de móveis e sempre tem cuidado quanto a isso, só conversa sobre umbanda se alguém pergunta, pois não sabe como o cliente vai reagir. Segundo Anahí, em Pelotas, de onde o esposo dela é natural, as religiões de matriz africana são mais aceitas, as pessoas podem sair paramentadas na rua para ir à sessão sem sofrerem ameaças. “Em Bento Gonçalves, as pessoas estão começando a saber que existimos. A gente não quer ser tolerado, queremos ser respeitados”, pondera.
Muitas histórias, uma religião
Anderson Machado conta que sua história com a Umbanda começou ainda criança, quando teve uma doença que o deixou cego. Os médicos disseram que não teria cura. Mas sua avó não desistiu e foi procurar ajuda na umbanda, que o curou. Com o tempo, ele foi se envolvendo mais na religião e se apaixonou. Ele tem orgulho de ser umbandista, porém já teve que esconder sua escolha para conseguir emprego.
Caso parecido com outra umbandista, que prefere não ser identificada. Ela é técnica de enfermagem. Como trabalha com público, ela não pode falar sobre religião, pois o preconceito é grande. Para os praticantes, esse é um retrato da intolerância religiosa em um país laico, onde todas crenças deveriam ser aceitas. A história de Iara Ferreira Peres é de do com o de Anderson.
“Minha sogra era da umbanda, eu não gostava nem um pouco. Mas eu engravidava e perdia a criança. Um dia procurei minha sogra e disse que era hora dela fazer algo para me ajudar”, lembra. Com a ajuda da religião, ela conseguiu ser mãe. Depois disso, resolveu participar e se apaixonou.
A história da umbanda
Nascida no Brasil, a umbanda é uma doutrina que carrega traços de religiões cristãs e das tradições africanas trazidas pelos escravos. Quando vieram para o Brasil, eram obrigados a deixarem de lado suas crenças, então, como uma forma de manterem viva sua herança cultural, foram identificando nos santos traços de suas divindades, que ganharam novos nomes, como Nossa Senhora dos Navegantes, que era identificada como Iemanjá. No espiritismo, encontraram a crença na reencarnação. Há também influência dos ritos religiosos indígenas.
Nas terreiras encontramos o congal, que é uma espécie de altar, com diversas imagens cultuadas pelos umbandistas. A religião não tem um livro base, como a Bíblia. A tradição é passada oralmente. Os pais e mães de santo são os proprietários do espaço onde a terreira funciona. As pessoas acolhidas por eles são chamadas de filhos e filhas. A “macumba”, termo pejorativo utilizado popularmente, nada mais é do que uma oferenda para pedir ou agradecer algo.
As tão conhecidas benzedeiras, que muitas pessoas recorrem quando estão com algum problema de saúde, também têm suas raízes na cultura africana, que e uma prática feita durante os ritos. Nas sessões são utilizadas ervas, feitos benzimentos e dados passes espirituais. Como é baseada na caridade, nada disso é cobrado e também não há restrições para participar. Quem precisa de ajuda é atendido.