Bento Gonçalves, uma cidade rica em história e tradição, também abriga, discretamente, um universo fascinante para muitos de seus cidadãos: o colecionismo de moedas. A numismática, como é tecnicamente conhecida, transcende o mero ato de guardar dinheiro; ela representa uma ponte direta com o passado, um estudo de culturas e economias, e, para muitos, uma verdadeira paixão. 

Histórico

O impulso humano de colecionar é tão antigo quanto a própria civilização. Desde os primórdios, objetos de valor intrínseco ou simbólico têm sido guardados e apreciados. No entanto, o colecionismo de moedas, em sua forma mais organizada, remonta há séculos. Embora seja difícil apontar um “primeiro” colecionador no sentido moderno, há registros que indicam a presença de coleções de moedas desde a Antiguidade Clássica. Imperadores romanos, por exemplo, eram conhecidos por possuir moedas raras e exóticas, muitas vezes com o objetivo de exibir seu poder e influência, ou como um registro de eventos históricos importantes. O famoso poeta italiano Petrarca, no século XIV, é frequentemente citado como um dos primeiros grandes colecionadores de moedas da era moderna, dedicando-se a reunir artefatos antigos com um olhar para a história e a arte. Ele não apenas colecionava, mas também catalogava e estudava suas peças, um precursor das práticas numismáticas contemporâneas. Petrarca via nas moedas não apenas um meio de troca, mas documentos históricos que revelavam detalhes sobre governantes, impérios e a vida de épocas passadas.

A paixão pela numismática floresceu de maneira notável durante o Renascimento, quando o interesse pelas antiguidades clássicas e pelo conhecimento se intensificou. Monarcas, nobres e acadêmicos passaram a ver as moedas como objetos de arte e fontes inestimáveis de informação histórica. Coleções reais, como as do Sacro Imperador Romano Rodolfo II no século XVI, se tornaram lendárias por sua vastidão e raridade, impulsionando a prática em toda a Europa. A partir daí, o colecionismo de moedas ganhou força, passando de um passatempo elitista para uma atividade mais acessível, embora ainda com um certo ar de exclusividade.

Moedas raras

Para os entusiastas e, em particular, para aqueles que estão começando a explorar esse universo, a numismática apresenta uma linguagem própria, repleta de termos e conceitos específicos que enriquecem a experiência. Um dos mais procurados e valorizados pelos colecionadores são as moedas com erros. Longe de serem defeitos indesejáveis, essas peças são verdadeiras joias para muitos. Erros de cunhagem, como cunho descentralizado, onde a impressão da moeda não está perfeitamente centralizada; dobramento de disco, que causa uma moeda com um formato anômalo; múltipla cunhagem, quando a mesma moeda é cunhada mais de uma vez; ou até mesmo erros de data ou inscrições invertidas, tornam cada exemplar único e extremamente raro. A raridade, nesse caso, é um fator determinante para o valor, elevando significativamente o preço de uma moeda que, em condições normais, seria comum.

Termos mais utilizados

Além dos erros, outros termos são fundamentais para entender o mundo da numismática. A flor de cunho (FDC) refere-se a uma moeda que está em perfeito estado de conservação, sem qualquer sinal de desgaste, saída diretamente da prensa. Em contraste, a MBC (Muito Bem Conservada) indica uma moeda com pequenos sinais de uso, mas que ainda mantém seus detalhes visíveis. A pátina, por sua vez, é a camada de óxido que se forma na superfície da moeda ao longo do tempo, conferindo-lhe uma coloração característica. Embora alguns a vejam como um sinal de deterioração, muitos colecionadores a valorizam, pois ela atesta a autenticidade e a idade da peça.

Outra peculiaridade são as moedas comemorativas. Frequentemente lançadas em edições limitadas para celebrar eventos importantes, datas históricas, personalidades ou monumentos, essas moedas são projetadas com detalhes artísticos únicos e muitas vezes apresentam materiais e acabamentos diferenciados. Elas se tornam objetos de desejo não apenas por sua beleza e simbolismo, mas também por sua tiragem reduzida, o que as torna naturalmente mais raras e valiosas ao longo do tempo. No Brasil, o Banco Central frequentemente emite moedas comemorativas que se tornam rapidamente alvo de colecionadores, como as moedas das Olimpíadas Rio 2016, que geraram um enorme interesse nacional.

Em Bento Gonçalves

No coração da Serra Gaúcha, onde o tempo parece esculpir a história em cada pedra e videira, um guardião de memórias metálicas dedica sua vida à preservação do passado. Carlos Barossi, um numismata apaixonado, trilha uma jornada que se iniciou em 1985, desvendando os segredos e as histórias contidas em cada moeda e cédula que passa por suas mãos. Sua paixão, que começou como um simples hobby e segue até hoje, resgatando e perpetuando o valor intrínseco de cada peça, não apenas financeiro, mas principalmente histórico e cultural.

A aventura de Barossi no mundo da numismática teve um início singular. Na década de 80, antes da era digital, que hoje facilita a busca por informações, o colecionador percorria casas de pessoas mais velhas, em busca de “moeda antiga, dinheiro antigo”. “Os senhores mais de idade nos davam umas latinhas. Só que, nisso, a gente não era tão informado, eu não estudava as moedas”, relembra. O conhecimento sobre cunhagem, um fator crucial para determinar o valor de uma peça, era escasso. “Pela quantidade de cunhagem de moedas é o valor. Quanto menor, mais rara é a moeda, então, mais o valor sobe”, explica.

O divisor de águas para Carlos Barossi foi em 1990, quando adquiriu seu primeiro catálogo de moedas. A partir daí, a paixão se aprofundou e o estudo tornou-se constante. “Depois eu comecei a me aprofundar, estudar mais todas as moedas”, afirma. 

Com o tempo, os catálogos foram se tornando mais completos, oferecendo não apenas a cunhagem e o peso, mas também o histórico detalhado de cada peça. “Já tem o histórico completo, a história da moeda e tal. Isso aqui já mostra a diferença de uma moeda para outra”, pontua, mostrando um de seus catálogos. 

Moedas especiais

Entre as centenas de moedas que compõem sua vasta coleção, algumas guardam um significado especial para Barossi. Peças de 1900, como a moeda de 4 mil réis, comemorativa do descobrimento, são tesouros que ele preza. “As minhas 3 primeiras moedas de Reis foram um presente, ela [a pessoa que deu] não sabia do valor”, conta, com carinho. 

Outra joia de sua coleção é a moeda mais antiga que possui, um “patacão” de 1696. “Essa é a moeda mais antiga”, revela, enfatizando a emoção de ter a história na palma da mão. A riqueza dos detalhes e a cunhagem manual daquela época são admiráveis, contrastando com a produção em massa das moedas atuais.

Significado histórico

A preservação da história é, para Barossi, o pilar fundamental do colecionismo. Em sua visão, os numismatas desempenham um papel crucial em manter viva a memória monetária de um país. “Porque assim, se tu vai analisar, hoje o que o colecionador faz?! Vai preservar. Eu quero passar para frente para minha família. Para meus futuros netos. Eu quero passar a história para frente”, declara, com convicção. 

Ele lamenta que muitas pessoas descartem moedas e cédulas antigas por desconhecerem seu valor e sua importância histórica. “Muitas vezes quando um colecionador morre, as peças são jogadas fora, por não conhecerem a importância que aquela coleção tem. Não só por não saberem o valor delas, mas também a relevância histórica”, ressalta. 

Em museus, segundo ele, a exposição é limitada, porque são os colecionadores que guardam e catalogam a vastidão da produção monetária de cada período, permitindo um acesso mais completo à informação a quem deseja conhecer os detalhes completos de determinado período.

O desafio do preço, especialmente em um mercado onde a raridade dita o valor, é contornado por Barossi através de trocas e do aprofundamento constante no estudo. “Depois que eu comecei a estudar elas, eu não me desfiz mais de moedas por impulso. Estudei mais o preço, valores, comecei a balancear um pouquinho as coisas. Hoje prefiro dar preferência sempre para troca”, explica. Essa prática permite que ele adquira peças que não possui, sem necessariamente precisar desembolsar um valor por elas e auxiliando também a completar coleções de amigos e conhecidos.

Grupos de colecionadores

O colecionismo de Barossi não é uma jornada solitária. Ele faz parte de diversos grupos online e presenciais, que reúnem entusiastas de moedas e cédulas de todo o país. Em um dos grupos do Vale do Caí, por exemplo, há 115 pessoas. Essa rede de contatos é fundamental para o compartilhamento de conhecimento e para a troca de experiências. “Tem muita coisa que eu também não sei, mesmo pesquisando no livro ou internet. Então os grupos permitem essa troca de conhecimentos também. Sempre que preciso pergunto aqui no grupo”  enfatiza, valorizando a colaboração.

Conservação

A preservação das moedas em uma cidade como Bento Gonçalves, conhecida por sua umidade, exige cuidados especiais. Barossi adota medidas rigorosas para proteger suas peças. “Quando eu vou mexer com uma moeda, eu uso a luvas. Utilizo os desumidificadores onde elas ficam guardadas”, explica.

A limpeza das moedas é um tabu para os colecionadores. “Limpar com algum produto?!, nem pensar. O colecionador odeia limpar a moeda, porque, se tu limpa, ela perde pátina”, alerta. A pátina, camada de oxidação que se forma na superfície da moeda ao longo do tempo, é um indicador de sua autenticidade e, por vezes, de seu valor.

Barossi explica que para as moedas de níquel e prata, que são mais suscetíveis à oxidação, o uso de luvas é indispensável. As moedas “Flor de Cunho” (FC), que saem diretamente da cunhagem e não foram manuseadas, são classificadas e seladas em invólucros especiais com luvas, para evitar o contato com o ácido úrico das mãos. As moedas de cobre, mais delicadas, recebem um tratamento especial: as encontradas em escavações ou com detector de metal (sempre com a permissão do proprietário do local) são limpas suavemente com azeite ou óleo para remover a sujeira sem danificar a pátina.

Além das moedas

Barossi pode ser considerado também um educador informal, pois dedica-se a transmitir seu conhecimento, especialmente para as novas gerações. “Teve a época da Copa, que pelo menos 10 crianças tornaram-se colecionadores”, orgulha-se, citando um jovem que o procura frequentemente em busca de informações sobre moedas específicas que não encontra. 

A história das moedas, desde o período colonial, passando pelo Império e pela República, é um universo vasto que Barossi explora com maestria. Ele demonstra como os álbuns de sua coleção narram a evolução monetária do Brasil, desde o Real de 1994 até as moedas de cobre da época da colônia. “Tem todas as moedas que saíram naquela época”, afirma, ao folhear seus catálogos e álbuns, que detalham cada cunhagem, cada período e cada curiosidade.

O colecionismo de Carlos Barossi é um testemunho da importância da preservação do patrimônio histórico. Em cada moeda, ele enxerga não apenas um pedaço de metal, mas um fragmento da linha do tempo, um elo com o passado que ele se empenha em manter vivo para as futuras gerações. 

A numismática, portanto, é muito mais do que um passatempo; é uma disciplina que exige pesquisa, paciência e um olho apurado para os detalhes. Seja na busca por uma rara moeda com erro, na apreciação de uma peça em flor de cunho, ou no desvendar da história por trás de uma pátina, o colecionismo de moedas oferece uma jornada contínua de descoberta.