Finalizada em 2019, a propriedade de Clacir Domingos Pegoraro, no Bairro Santa Helena, foi construída totalmente com materiais centenários, vindos de três casas em estilo enxaimel, desmontadas no Vale do Rio Pardo
Uma casa de alma e corpo alemães em uma cidade de coração italiano. Assim é a propriedade pertencente ao empresário bento-gonçalvense Clacir Domingos Pegoraro, 72 anos, que chama a atenção de todos aqueles que passam pela Rua Severo Giacomello, no bairro Santa Helena. Construído sobre um dos lotes distribuídos pelo Governo Imperial para os primeiros imigrantes que chegaram à Colônia Dona Isabel (hoje, Bento Gonçalves), para além da arquitetura tipicamente alemã, o espaço é feito integralmente com material centenário resgatado e transportado desde Sinimbu, pequeno município emancipado de Santa Cruz do Sul, terra de descendência germânica.
Casa nova, mas centenária
Uma casa que, inicialmente, era para ser um mero quiosque, a pedido das pessoas que alugavam as quadras de futebol pertencentes a Pegoraro, que ficam anexas ao terreno onde se localiza a edificação, acabou se transformando numa construção grandiosa que resgata e homenageia a cultura da imigração alemã no Rio Grande do Sul. O empresário, que passava por Santa Cruz do Sul com certa frequência, costumava parar na cidade para visitar o antiquário de um amigo. Numa das conversas, soube de algumas casas antigas que estavam abandonadas pelo interior e que podiam, talvez, ser desmontadas para lhe fornecer material barato.
Morador de uma casa centenária herdada do bisavô (imigrante italiano que chegou a Bento Gonçalves em 1878, e do qual a família ainda guarda o documento de posse do lote — feito em papel almaço, com caneta de pena e selo), como um admirador de antiguidades, ao ver as casas que estavam à venda, Pegoraro deixou a economia de lado, para começar a dar vida, mesmo sem saber, a um processo bastante custoso e complexo. “Pensei que ia custar barato, pois era madeira velha, mas no fim, com transporte e mão de obra, ficou mais caro que uma casa nova”, brinca.
No total, adquiriu três construções com aproximadamente 5 x 6m² cada, que se encontravam abandonadas numa rua nos confins do Cerro da Mula, comunidade no interior de Sinimbu. Conforme conta, o local que antigamente era acessível apenas por trilhas no lombo de animais — daí seu nome —, ainda abriga outras construções semelhantes, mas, em sua maioria, utilizadas como galpões ou abandonadas, assim como àquelas que comprou. Apesar do estado das edificações, a qualidade dos materiais utilizados — extraídos das redondezas pelos imigrantes há pelo menos 14 décadas —, permitiu que o que restava das construções pudesse ser integralmente reaproveitado. “Há ainda algumas casas assim lá no interior, mas estão apodrecendo. O pessoal foi construindo novas e deixando essas no tempo ou usando para armazenamento. Mas tudo ali resistiu. As portas que tenho no banheiro, por exemplo, são de madeira maciça de louro, que pode deixar no tempo por mais 50 anos, que não terá problema nenhum”, assinala.
Ciente da história das edificações, ele prezou pela preservação das peças. O cuidado foi constante desde a desmontagem das paredes e vigas até o transporte para que nada fosse perdido ou danificado. Conforme conta, as casas foram desmontadas e transportadas uma a uma. Cada peça retirada era organizada em um monte distinto, para facilitar a remontagem em Bento Gonçalves. “Foi um trabalho bem sofrido. Acampei muitas vezes lá em Cerro da Mula, pois era algo que tinha que ter atenção. Se a pessoa desmonta sem cuidado, pode quebrar as espigas e mesmo se machucar, pois tinha que levantar toda estrutura para desmanchar, fazer uma armação e aí soltar com uma corda. As casas eram tão bem encaixadas que não se quebrou nada”, destaca.
Ao todo, foram seis viagens, em cinco caminhões e mais uma carreta — usada para transportar a viga central que sustenta o teto da casa, uma peça de 13 metros de madeira maciça talhada à mão —, e três anos de esforço para o projeto ser concluído. De três residências antigas no interior de Sinimbu se fez uma nova casa alemã em Bento Gonçalves, que apesar de finalizada em 2019, já nasceu com mais de 140 anos de história.
“O que mais me chama a atenção são os detalhes. Tudo era feito à mão e sem as ferramentas que temos hoje. Fico imaginando todo o trabalho e o tempo que empenhavam na construção uma estrutura assim para morar”
Arquitetura alemã
Presentes e preservadas em roteiros turísticos como os de Gramado e Nova Petrópolis, as famosas “casas em estilo alemão”, com fachadas de madeira entrelaçada preenchidas por tijolos ou taipa, não respondem a um estilo arquitetônico em comum, mas sim a um método construtivo. Seja pela presença dos materiais, em suma madeira e barro, ou pela falta de ferramentas, uma vez que o método, todo feito com encaixes, dispensa pregos ou parafusos, o “enxaimel”, também conhecido como “Fachwerk”, que significa “treliça”, foi um dos métodos mais utilizados pelos imigrantes alemães que se espalharam pelo Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo, no século XIX.
De forma geral, o enxaimel se caracteriza por estruturas de madeiras encaixadas com vãos preenchidos por pedras, tijolos ou taipas. As construções são marcadas por um processo artesanal, onde a estrutura é montada como um quebra-cabeça. As peças, talhadas a mão, se encaixam com precisão, sem o uso de pregos ou parafuso. O que, conforme, conta Pegoraro, por um lado facilitou o desmonte das três casas que comprou em Sinimbu, mas que, por outro lado, dificultou o transporte e a reconstrução da nova casa, uma vez que nenhuma peça poderia ser modificada ou instalada de modo distinto do original. “As madeiras são encaixadas e os tijolos eram assentados com terra e cal. Era só ir batendo com a colher de pedreiro para retirar e aí limpar as peças. Foram três anos desmontando lá e trazendo para cá, aonde íamos remontando. Era uma semana no Cerro da Mula e uma aqui para não perder a noção, pois cada madeira tem seu local. Tinha que ser bem calculado onde encaixava, pois se tivéssemos que cortar alguma coisa, ia impossibilitar a montagem”, explica.
O cuidado com o desmonte e com o transporte permitiu que todo o material fosse utilizado na nova casa. O material excedente, inclusive, foi utilizado na decoração. Uma vez que usou as sobras dos tijolos para o piso, os tabuões, originalmente usados com esse fim, foram reaproveitados na confecção de mesas. Da mesma forma, fez os lambrequins — ornamentos pendentes comuns em casas de estilo colonial —, as luminárias, e o quiosque, que foi criado em paralelo à casa, agora usada como espaço de eventos. “Foi trabalhoso, mas valeu a pena. Acho que se alguma das pessoas que construíram essas casas no passado pudessem ver que os materiais que criaram ainda estão sendo utilizados hoje, 140 anos depois, iam ficar muito orgulhosas”, finaliza.
Materiais excedentes foram utilizados nos detalhes como os lambrequins e as luminárias externas