Sem vínculo empregatício, sem direitos e com jornadas exaustivas, milhões de trabalhadores enfrentam a precarização imposta por aplicativos de transporte e entrega, especialistas alertam para exploração do trabalho
A promessa era sedutora: liberdade de horários, autonomia e ganhos proporcionais ao esforço. Mas para mais de 1,6 milhão de brasileiros que hoje trabalham por meio de plataformas digitais como Uber, iFood e Rappi, a realidade tem sido marcada por instabilidade, longas jornadas e ausência de garantias mínimas. Esse fenômeno, batizado de uberização do trabalho, se tornou um dos maiores desafios contemporâneos nas relações laborais. “A uberização do trabalho é um fenômeno associado ao crescimento das plataformas digitais que conectam trabalhadores a consumidores por meio de aplicativos”, explica a professora Lodonha Maria Portela Coimbra Soares, coordenadora do Observatório do Trabalho da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Relações fragilizadas
Segundo Lodonha, o modelo se sustenta na ideia de que esses profissionais são autônomos ou “parceiros”, o que os exclui de direitos como 13º salário, férias, FGTS, aposentadoria e seguro-desemprego. “O trabalhador atua sem vínculo empregatício formal, o que o deixa desprotegido diante de qualquer problema ou instabilidade”, afirma.
Dados do Instituto Locomotiva reforçam essa realidade: ao menos 40% dos trabalhadores por aplicativo não têm outra fonte de renda e cerca de 60% trabalham mais de 10 horas por dia.
A falsa liberdade

Um dos atrativos mais divulgados pelas plataformas é a “liberdade de horários”. Na prática, no entanto, a necessidade de garantir o mínimo para sobreviver transforma essa flexibilidade em jornadas exaustivas. “A remuneração é variável, instável e depende da demanda e das avaliações dos usuários. Muitos precisam ficar conectados o dia inteiro para atingir uma renda mínima”, aponta Lodonha.
Algoritmos que mandam
Embora classificados como autônomos, os trabalhadores são rigidamente controlados por algoritmos invisíveis. Avaliações por estrelas, bloqueios automáticos e metas ocultas são comuns. “O controle é indireto, mas constante”, destaca a professora. “Trata-se de uma vigilância algorítmica que pune silenciosamente quem não corresponde às regras da plataforma”, diz.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) reconheceu recentemente que esse modelo de “gamificação” caracteriza subordinação, abrindo espaço para o reconhecimento de vínculo empregatício em alguns casos.
Riscos e responsabilidades
Todo o risco da operação, combustível, manutenção do veículo, acidentes, seguro, alimentação e até os próprios equipamentos, é assumido pelo trabalhador. “A empresa lucra sem assumir os encargos de empregador”, critica Lodonha. “Essa é uma nova forma de exploração, que se apoia na tecnologia, mas repete práticas de precarização histórica”, aponta.
Um estudo da Unicamp com motoboys mostra que 65% dos entrevistados já sofreram acidentes, e muitos trabalham até 24 horas seguidas nos fins de semana.
Isolamento e desorganização coletiva
Outra consequência grave é a ausência de representação sindical. Por não serem considerados empregados formais, esses trabalhadores geralmente estão fora da cobertura dos sindicatos tradicionais. “Isso dificulta a organização coletiva e a luta por direitos”, diz a docente.
Apesar disso, movimentos como o Breque dos Apps (2020) e os Entregadores Antifascistas têm buscado fortalecer a mobilização por melhores condições de trabalho.
Debate jurídico e político em curso
O cenário jurídico permanece controverso. Em 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que parte dos processos envolvendo trabalhadores por aplicativo deve tramitar na Justiça Comum, o que pode dificultar o reconhecimento de vínculos formais.

No Congresso Nacional, o Projeto de Lei 536/2024 propõe um valor mínimo por hora, contribuição ao INSS e alguns direitos básicos para motoristas. Ainda assim, a proposta enfrenta resistência de empresas e parte da bancada liberal, sob o argumento de que a formalização pode inviabilizar o modelo.
Impacto previdenciário
A uberização do trabalho também traz consequências estruturais para o sistema público de seguridade. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), embora a adesão de trabalhadores autônomos ao sistema previdenciário tenha crescido nas últimas décadas, grande parte contribui de forma esporádica e sem regularidade. Isso compromete não apenas a aposentadoria individual desses profissionais, mas também a sustentabilidade do sistema como um todo.
O risco, segundo o Ipea, é que a proliferação de trabalhadores por plataformas, que não recolhem encargos nem têm contribuições fixas, aumente o déficit da Previdência Social e sobrecarregue políticas públicas, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e programas de assistência. O alerta é reforçado por análises do Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, que apontam que o avanço desse modelo representa uma perda significativa de arrecadação tributária e previdenciária para o Estado brasileiro.
Países europeus apertam o cerco contra a uberização
Enquanto o Brasil ainda discute propostas de regulamentação, diversos países já adotaram medidas mais firmes contra a precarização promovida por plataformas digitais. Na Espanha, o governo implementou em 2021 a chamada Lei Rider, que passou a presumir vínculo empregatício entre plataformas de entrega e seus trabalhadores. A legislação também exige que as empresas revelem os critérios de funcionamento dos algoritmos que controlam as jornadas.
Segundo o jornal El País, após resistências iniciais, a empresa Glovo, na Espanha, foi multada em 265 milhões de euros por burlar a legislação e, em 2024, anunciou a mudança definitiva de seu modelo de atuação, encerrando o uso de “falsos autônomos” após pressão judicial e risco de responsabilização penal.
No Reino Unido, em 2021, a Suprema Corte determinou que motoristas da Uber deveriam ser classificados como “trabalhadores”, uma categoria intermediária com direito a salário mínimo, férias remuneradas e proteção contra jornadas abusivas. A decisão histórica foi noticiada pela BBC Brasil e abriu precedentes para que entregadores também busquem reconhecimento judicial de vínculo empregatício no país.
Um modelo em xeque
O avanço das plataformas digitais não é, por si só, o problema. O desafio está em garantir que a inovação tecnológica venha acompanhada de proteção social, segurança jurídica e dignidade para quem trabalha. Como resume Lodonha Soares: “Esse modelo reproduz a lógica do lucro acima de tudo, com nova roupagem. Precisamos repensar urgentemente como regular essas relações”.
Segundo especialistas e estudos recentes, a uberização já ultrapassou o status de tendência de mercado e vem se firmando como um dos temas centrais nas discussões sobre o futuro do trabalho no Brasil. Enquanto o debate sobre regulação avança lentamente, milhões de trabalhadores continuam atuando como prestadores de serviço, muitas vezes sem as garantias previstas pela legislação trabalhista.