As histórias de quem faz parte do dia a dia de muita gente, mas que poucas pessoas enxergam
Os profissionais invisíveis são aqueles que, apesar da importância de seu trabalho na sociedade, não são valorizados. Com profissões consideradas inferiores por parte da comunidade, esses trabalhadores não têm diploma, status social e nem prestígio econômico, mas fazem o que poucos fariam. Garis, coveiros, lixeiros, cozinheiras, faxineiras. Eles não são apenas marginalizados ou sofrem preconceito, mas em alguns casos sentem a indiferença de muitos.
A falta de reconhecimento no trabalho, de acordo com a psicóloga Franciele Sassi, especialista em relacionamentos, pode gerar diversos problemas emocionais. “Isso gera questões de ordem emocional que podem ser complicadoras para a saúde mental dos profissionais. Estamos falando da impossibilidade de sentir e expressar. Uma vez que eles não são vistos, tampouco têm um espaço validado socialmente para manifestarem sentimentos e pensamentos, os quais, muitas vezes, acabam sendo guardados para si mesmos, gerando sintomas de outra ordem como ansiedade, estresse, depressão. Ser reconhecido é importante, porque se trata de ter um lugar, de ser olhado e amparado”, afirma.
Histórias da invisibilidade
Por mais invisibilizadas que algumas profissões sejam, sempre há quem as faça com dedicação. A exemplo de Delma Bordignon, gari na praça Cristo Rei, há 12 anos, conhecida por trabalhar sempre com seu chapéu de palha. “Não sou muito de ligar para preconceitos e converso com todo mundo. Têm pessoas que não veem nosso trabalho, mas tem gente que nos dá os parabéns. Acho que isso vem da cabeça de cada um, se começamos a olhar as pessoas pelo que elas falam, vemos o preconceito. O importante é fazer o nosso serviço. Sempre têm as pessoas que nos valorizam”, relata a trabalhadora de 58 anos.
De acordo com o Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana (Islu), feito em 2017, Bento Gonçalves foi classificada como a cidade – com população acima de 100 mil habitantes – mais limpa do Brasil. A profissão de gari é uma das principais responsáveis por esse título. Delma reconhece a sua relevância para a sociedade, principalmente durante a pandemia. “Acho que a minha profissão é muito importante. Na primeira parada por causa do coronavírus, nos primeiros 14 dias, só continuaram trabalhando os lixeiros e os garis. Só tinha a saúde e a gente na rua, porque o resto estava todo mundo em casa”, ressalta.
Após mais de uma década prestando serviço para a comunidade, Delma já passou por diversas situações complicadas e enfrentou outras tantas. Sobre momentos constrangedores vivenciados nesses anos, a gari relembrou um fato ocorrido com uma colega de profissão. “Ela chamou a atenção de um rapaz que jogou o cigarro no chão, ele simplesmente respondeu que era o trabalho dela limpar e que era um serviço pago”, lembra.
Para não passar pelo mesmo, a varredora prefere não cobrar de nenhum cidadão nas ruas o zelo para com a limpeza da cidade. “Por isso que se jogam no chão alguma coisa, eu não costumo dizer nada. Sei que tem gente que, se pedimos para ter mais cuidado, é fácil de receber esse tipo de resposta, que o teu serviço é esse e que você é paga para isso”, admite. Apesar dos contratempos, a gari sente orgulho do ofício que realiza. “Faço isso aqui com amor e é bom ter a cidade limpa. Tem pessoas que se sentem inferiores, que não gostam desse serviço, mas não acho. Gosto do meu trabalho”, finaliza Delma.
Algumas profissões não são vistas pelas situações às quais são expostas, mas não significa que não mereçam ser reconhecidas. É o caso de Marcos Tadeu Ribeiro, coveiro do Cemitério Central de Bento Gonçalves. “Na verdade, são poucos que veem o serviço da gente e reconhecem o que fazemos. Aqui vemos de tudo, todo tipo de família. Mas entendo o que as pessoas passam quando estão aqui, pois está cada um com a sua dor, eles estão preocupados com a família, com o luto que estão vivendo. Eles não buscam saber o que o coveiro faz ali, isso aí é o que acontece no dia a dia”, conta.
Com um trabalho considerado diferente pela carga emocional que pode ocasionar, o coveiro diz que apesar da tristeza que presencia todos os dias, quando há a perda de um ente querido de alguém, gosta muito do que faz. “Eu nunca imaginei estar aqui, mas depois que entrei o meu trabalho é esse. Amo o meu serviço, é tudo para mim. Acho que é bem importante o que faço para a sociedade e não ligo para o que falam sobre a minha profissão. Só faço o que precisa ser feito”, explica. Apesar de prestar um serviço pouco lembrado, Ribeiro afirma não ser alvo de discriminação. “Nunca sofri nenhum tipo de preconceito nesse trabalho, estou aqui há um ano. Mas às vezes me sinto invisível porque têm pessoas que nem notam”, conclui.
Reconhecimento é uma necessidade
Alguns profissionais não se consideram invisíveis, como é o caso da cozinheira Nara Suzana Monteiro. Quem trabalha na cozinha de um restaurante carrega grande responsabilidade, pois a comida é a essência do lugar. Os frequentadores desses locais não conhecem quem está cozinhando, mas Nara não se importa com isso. “Não me considero invisível porque às vezes me chamam lá na frente para esclarecer alguma coisa, receber opiniões e elogios. Várias vezes me chamaram para me elogiar. Sempre tem quem considere o meu trabalho inferior, até pessoas que convivem comigo. Mas acredito que a minha profissão tem importância porque alimentação é uma coisa que todo mundo precisa. Eu gosto do que eu faço e do jeito que eu faço”, comenta.
Outro trabalhador aparentemente esquecido pela comunidade é o porteiro, que por ficar dentro da guarita dos prédios, passa despercebido por muitos. Maicon Bastos é um destes profissionais. Ele garante, entretanto, que não se sente ignorado por moradores do condomínio onde trabalha, mas pelos visitantes do lugar. “Há quase três anos eu estou como porteiro. Normalmente não me sinto ignorado ou invisível para os moradores, mas acontece até com gente de fora, como corretores, pessoas interessadas em comprar apartamentos, esses fazem questão de ignorar”, relata.
A respeito de suas experiências, o porteiro conta como são os momentos em que se sente invisível. “As situações nas quais isso acontece são momentos em que as pessoas te veem e não dizem bom dia ou boa tarde, apenas te ignoram. Eu posso estar com a porta aberta que eles passam, olham e não falam nada. Mas quando precisam de alguma coisa, abrem aquele sorriso, aí vêm me pedir. Em alguns casos dá para perceber no olhar quando consideram a minha profissão inferior”, descreve.
Para Bastos, todo trabalho deve ser reconhecido e lembrado, independente de qual seja. “Eu me acostumei, hoje gosto do que faço, mas acho que em qualquer profissão é preciso haver um reconhecimento. É muito ruim se sentir invisível. Imagina você, como engenheiro, como médico, fazendo um ótimo serviço e todo mundo te ignorando. O respeito pela profissão é necessário em qualquer área”, afirma.
A faxineira Izolete Souza passa por episódios parecidos, em que se sente invisível mesmo trabalhando perto de muitas pessoas. “Na nossa profissão somos muito desprezadas, mas se não fosse por nós, as pessoas não teriam um ambiente limpo para ficar. Eu trabalho com faxina há mais cinco anos, e já me senti ignorada por muitas vezes. Já estive em lugares que algumas pessoas eram queridas comigo, mas outras simplesmente nem davam bom dia. Nesses momentos a gente se sente muito mal”, diz.
Uma das ocasiões que Izolete enfrentou foi mais constrangedora, por ter sido ignorada por alguém que faz parte de sua própria família. “Eu trabalho no shopping, ali também tem bastante gente que é educada, mas outros que não são. Já aconteceu de uma sobrinha dar de cara comigo. Eu estava limpando e ela fez de conta que nem me viu. Pessoas estranhas, tudo bem, mas quando acontece com parentes é ainda pior”, afirma.
A mudança inicia por nós
Para que o hábito de tornar invisíveis as pessoas não permaneça na sociedade, é preciso entender qual é a raiz do problema e porquê isso acontece. A psicóloga Franciele diz que parece existirem questões culturais históricas envoltas à invisibilidade de algumas profissões. “Há áreas que, seja pelo status ou ‘poder’ que promovem, acabam se sobrepondo às demais e se tornando reconhecidas pelas comunidades. E isto, muitas vezes, vai sendo reforçado de geração em geração, o que, por consequência, também vai reduzindo possibilidades de educação social acerca da importância de áreas que talvez não tenham o mesmo aparecimento, mas que são igualmente essenciais. Acaba-se criando margem para que não se saia daquilo que já é conhecido”, explica.
A psicóloga argumenta que é uma questão de reeducação social a expansão de pensamento, para incluir as profissões que se tornam invisíveis por não serem reconhecidas pelo que executam. “O fato de um grande grupo de pessoas considerar uma classe inferior a outra, trata-se de ficarmos naquilo que é mais conhecido, que aprendemos que é importante e que, de certa forma, traz estabilidade e segurança, por mais que restrinja modos de ser e fazer. Provavelmente, se as pessoas tivessem mais proximidade e em contato com tais áreas, entendendo o trabalho de cada um, muitas crenças poderiam ser desmistificadas e a valorização faria parte de um todo”, esclarece.
Para a quebra de paradigma social, novos hábitos precisam ser criados e postos como modelo para as gerações futuras. Franciele destaca a importância da aproximação entre estes profissionais e a sociedade, “reconhecendo os méritos do que executam para que o nosso bem-estar no dia a dia seja mantido. Buscar entender a dinâmica de cada profissão, ou mesmo aproximar-se para agradecer pelo trabalho e ressaltar o quão bem feito foi executado, já consistem em passos grandiosos na mudança social. São detalhes que, muitas vezes, deixamos passar por acharmos que não são relevantes ou mesmo por receios. Precisamos aprender a falar mais sobre as coisas boas e a agradecer por elas acontecerem”, finaliza.