Casas históricas estão dando lugar a prédios, o que mostra a transformação do primeiro bairro de Bento Gonçalves
Há mais de 100 anos, por volta de 1905, famílias começavam a se instalar no ‘Via Del Loti’. Neste momento nascia o primeiro bairro da cidade, o São Francisco. Atualmente, a localidade cresce constantemente, as antigas casas transformam-se em grandes prédios e salas comerciais.
Um morador histórico
Em 1948, o bairro possuía, no máximo, 20 casas. Nesta época, o comerciante Ângelo Zandoná instalou o tradicional “Armazém Zandoná”, onde vendia um pouco de tudo. Seu filho Zeferino Zandoná, 88 anos, conta que nestes 74 anos a região mudou muito. “Quando cheguei era tudo mato, a maioria das residências eram de madeira e, com o tempo, várias ruas foram sendo abertas. Aqui, todos eram amigos, eu tinha um comércio e os clientes sempre foram muito queridos e unidos”, recorda.
Como tinha uma loja, aconteceram várias coisas diferentes e muitas histórias. “Teve uma vez em que vendíamos milho e, em frente ao armazém, era tudo cascalho. Foram descarregar e um saco se abriu, caindo no meio do cascalho, não consegui recolher. Ficou até perto da noite e passou uma pessoa e tentou ajuntar, sem sucesso. Foi para casa e depois voltou lá com duas galinhas em baixo do braço, ficou até elas comerem o milho, repetiu isso por três tardes, até que no quarto dia choveu e não deu mais”, conta aos risos.
Para o comerciante aposentado, atualmente, falta ter asfalto em todas as ruas. “A Carlos Dreher Filho, o restante da Garibaldi e da Marques de Souza, a Dr. Beniamino Giorgi, a Aclídio Miele e a Borges do Canto”, cita.
Uma história religiosa
Em 1918, a capela, localizada na esquina das ruas Garibaldi e Dr. Beniamino Giorgi, começou a ser construída de tijolos e coberta com telhas de barro francesas, em um terreno doado por Antônio Reali. O madeiramento que suportava o telhado era pego em uma serraria de Pinto Bandeira, Giacomo Poletto e seus amigos dos ‘Lotes’ iam buscar com mulas e carroças. Essa atividade dependia da disponibilidade do tempo e, assim, levou dois anos para ser concluída.
Dez anos após o início da construção, um sino foi confeccionado e doados pelos irmãos Santo e Antônio Gnoato. Em dezembro de 1933, a “igreja dos Lotes”, com era conhecida, estava pronta. Conta-se que as primeiras festas em honra a São Francisco eram realizadas ao ar livre no terreno onde se encontra, hoje, o Instituto de Educação Estadual Cecília Meireles. No local, eram armadas barracas com lonas.
Há mais de 60 anos, a aposentada Maria Ignez Caron Signor, 83 anos, mora na localidade e é zeladora da Capela São Francisco há meio século. Ela se anima com os dados que está juntando em parceria com Neusa Caon e outros moradores, sobre a história do bairro. “Trabalho na igrejinha e coordeno as missas que acontecem toda quarta-feira do mês. Lá são realizados batizados e casamentos com poucas pessoas. Foi a primeira igreja que pertence à Paróquia Santo Antônio e, no começo, também funcionava como escola. Eu e meu marido temos um histórico de quando reinauguramos ela em 2005, onde há todo o passado da região”, revela.
De acordo com Maria, o São Francisco cresceu muito em edifícios e comércio. “No começo era um bairro bem tranquilo e, depois, começou a aumentar. Aqui era o beco dos chorões, tinha uma vertente que, na época o Mônaco, puxava a água dali para ir até a cantina. Depois desviaram e construíram prédios em cima”, lembra. Além disso, ela ressalta que lá é um local de pessoas antigas e o convívio entre elas é essencial. “Vejo que muda muito quem mora região por conta das novas construções. Mas estarei aqui auxiliando na igreja, todos que quiserem, até quando Deus permitir”, conclui.
Um futuro de edifícios
A aposentada Inês Trentim Pelizzari, 63 anos, reside há 45 no bairro, antes morava no interior, onde não tinha colégios de segundo grau. “Nos mudamos para poder estudar, comecei no Aparecida e depois fui para o Cecília Meireles. Quando cheguei, aqui ao lado era um terreno enorme e vazio, meus pais até plantavam. Agora veio isso, muitos prédios”, relata.
Segundo Inês, somente as pessoas antigas continuam morando nas casas, mas muitas residências são destruídas para a construção de edifícios. “É algo normal, nos outros bairros próximos ao centro também está acontecendo isso. Alguns herdeiros de casas antigas no bairro já têm planos de vender, mas eu, enquanto puder, vou manter meu lar”, frisa.
Para ela, a segurança hoje em dia está boa, há um tempo atrás era pior. “Claro que sempre temos que estar prevenidos, alarmes, grades e tudo que é necessário”, alerta. Na saúde, ela destaca que seria bom ter um posto de saúde. “Aqui não tem um, o que é péssimo, fazemos parte do atendimento na unidade do Centro. Lá o acolhimento é ótimo e gostei desta logística de agendamento, pois daí não tem filas. Mas seria muito melhor ter um para atender somente os moradores do bairro”, diz.
Conforme a aposentada, o que falta muito para quem reside no São Francisco é uma farmácia. “Não temos, seria excelente ter uma aqui, pois no momento é preciso se deslocar para outros bairros e, muitas vezes, ficar esperando um tempo por conta de filas grandes”, completa.
A cozinha como paixão
A professora, Sandra Bettoni Cavalli, 58 anos, não se vê morando em outro lugar. “Estou aqui desde que nasci, só virei a esquina para morar no prédio ao lado. Quando cresce no local, você se acostuma”, fala. Antigamente, ela menciona que tinham poucas casas e conhecia todos os vizinhos. Tudo começou a mudar quando construíram prédios e vieram novas pessoas.
Sua mãe, Natalina Ros Bettoni, 85 anos, foi cozinheira do Clube Susfa por muitos anos, ela recorda de quando era pequena e auxiliava nas grandes festas. “Cozinhava em casamentos, 15 anos, fim de ano de empresas, etc. Lembro que ia lá quando faziam, tinha capeletti e eu ajudava a colocar nas mesas. Tinham várias cozinheiras, mas daí uma faleceu, depois a outra e o grupo se desfez. Mas a comida era maravilhosa, não tem quem superava”, relembra Sandra.
Para o futuro, a professora vê um local melhor do que hoje, pois segunda ela, é um bairro esquecido. “Poderiam aprimorar mais a região, pois para lazer tem somente uma praça. Deram uma revitalizada, pois por anos ela ficou abandonada, agora está mais bonita e agradável, que te convida para ir lá. Não tem muitos atrativos e opções de diversão, quer algo diferente, tem que sair aqui.”, confessa. Além disso, ela aponta a necessidade de alguns estabelecimentos. “Pelo tamanho do bairro, deveria ter uma farmácia e uma lotérica, faz muita falta para os moradores. Em outras localidades, tem uma perto da outra, aqui não tem nada”, encerra.
Quase 100 anos de histórias
A quase centenária Hercilia Racheli, 94 anos, recorda dos tempos em que a visão de sua janela era de lindos parreirais e árvores cheias de frutos. “A primeira casa que foi construída nesta área, foi a minha. Aqui nestes terrenos, cultivavam uvas e outras frutas, como caqui, figo e pêssego. Logo ali na frente tinha uma vertente de água maravilhosa, depois taparam e construíram um prédio em cima. Desde que moro aqui, ela nunca havia secado ou diminuído a água”, vislumbra.
De acordo com ela, no passado era muito bom morar no bairro e o beco em que reside, era uma calmaria. “Tinha uma fileira de salgueiro-chorão, era uma tranquilidade, agora está sempre cheio de carros e cortaram todas as plantas. Tudo está se modernizando para a pior. Para mim está bom, mas queria que tivesse menos movimento”, realça.
Comércio está evoluindo
Há comércios de vários tipos no São Francisco, desde pet shops a floriculturas. A proprietária de uma tradicional oficina mecânica, Vanice Baldasserelli, 58 anos, mudou-se do Botafogo há um ano e encontrou no novo endereço, uma oportunidade de crescer ainda mais. “Estávamos procurando um lugar onde tivéssemos a mesma movimentação da antiga mecânica. Uma oficina tem que ser bem visualizada, aqui encontramos o que procurávamos, um pavilhão com espaço maior e boa circulação de pessoas”, afirma.
Os clientes antigos permanecem e os moradores da localidade atual, estão apostando na qualidade da oficina. “Aqui conseguimos agregar ainda mais clientes, os residentes do Bairro São Francisco estão gostando do nosso trabalho. Aqui tem um movimento grande de pessoas que passam, tem o posto de gasolina, as lavagens, então tudo se acrescenta”, elogia.
Para ela, assim como diversos moradores do bairro, ter uma farmácia seria essencial. “Fico o dia inteiro trabalhando aqui e quando preciso de algum medicamento, tenho que me deslocar até o Centro. Lá no Botafogo estava rodeada de farmácias e tivemos que sair de lá porque mais uma seria inaugurada, aqui não há nenhuma”, pede.
Educação de qualidade
No bairro, não há escolas infantis municipais, mas as particulares sempre garantem vagas pela prefeitura. O Centro De Recreação Infantil Little Kid’s está ativo há mais de 30 anos no mesmo endereço. Há 13, é gerenciado pelas irmãs Daiane Dalpiaz Mezaroba e Luciane Dalpiaz. “Atendemos muitos moradores da localidade e a comunidade escolar é bastante participativa. Os anos de 2020 e 2021 foram bem difíceis por causa da pandemia, então em 2022 fizemos uma proposta de projeto chamado ‘Sua marca no mundo’, ele desencadeou todas as atividades deste ano que sempre destacavam as vivências das crianças e o que elas têm para contribuir um com o outro”, sublinha Daiane.
Além disso, o lixo da escola é feito com jornal. “É um processo reciclável, então todo o lixo orgânico é colocado no jornal, não temos a utilização da sacola plástica. É um ponto bem relevante que conseguiu alcançar as famílias, que também realizam isso em casa”, frisa. A doação de brinquedos no Dia das Crianças e no Natal também é muito importante para a diretora. “Ao longo do ano, fomos fazendo pequenas ações. Temos o Natal Solidário em que iremos fazer doações de brinquedos para o Corpo de Bombeiros. Procuramos pegar pequenos detalhes do dia a dia e trazer para a rotina das famílias e que os trabalhos sejam feitos em pequenos grãozinhos”, finaliza.
Um clube histórico
Grande e forte referência para o bairro. A Sociedade União São Francisco América (Susfa) é um marco de progresso, entretenimento e valorização dos moradores mais antigos. Conforme o atual presidente do clube, Eduardo Belatto, 59 anos, é um legado para os jovens. “O Susfa tem feito muito por várias gerações em Bento Gonçalves, tornando-se ponto de referência. Os melhores grupos, conjuntos musicais e cantores passaram pelo seu palco trazendo orgulho para o bairro, cidade e região”, valoriza.
De acordo com Belatto, houveram mudanças significativas na condução dos negócios ao longo dos anos, como na forma de administrar, instalações revitalizadas, cercamento do pátio externo, climatização do salão de festas e salas anexas. “Além da construção e conclusão de salas para eventos na sede esportiva, totalizando mais de quatro mil m² de área construída”, completa.
Ao seu olhar, o local sempre foi de casas e os edifícios estão desfigurando a característica do bairro centenário. “Vejo que a maioria das residências dos antigos moradores foram demolidas para dar lugar a prédios. Estamos caminhando para conviver em meio ao concreto, a cidade está verticalizando e concentrando tudo próximo ao Centro”, finaliza.
Fotos: Cláudia Debona