O que me inquieta é perceber como nos tornamos reféns das nossas próprias intenções. Viemos de uma geração que aprendeu a viver com pouco — e, talvez por isso, hoje tentamos dar aos nossos filhos tudo aquilo que não tivemos. Só esquecemos de ensinar o valor do que é essencial.
Cresci com chuveiro pingando água quente aos poucos e o frio do banheiro espantado com um caneco de alumínio queimando álcool. Não havia secador de cabelo, nem médico particular, muito menos vacina fora do posto de saúde. E tudo bem. A vida era dura, mas a gente seguia.
Sabíamos que éramos classe média baixa — e isso era uma condição, não uma sentença. Escola pública, trabalho cedo, estudo no tempo que sobrava. A internet só chegou quando eu já ganhava meu próprio dinheiro. O primeiro computador veio de um emprego temporário nas férias. E os uniformes, feitos pela costureira pra durar, eram sempre três números maiores e serviam por anos — como deveria durar a gratidão.
Ar-condicionado? Só na loja do centro. Refeição no quarto? Nunca. Jantava-se à mesa, junto. E antes de dormir, minha mãe sempre perguntava sobre dever de casa, prova, responsabilidades. Havia cobrança, mas também cuidado. Caminhava até a escola e o tempo parecia mais longo — talvez porque não havia tela pra distrair, só o silêncio, os pensamentos e o tédio criativo que ensinava a sonhar.
Felicidade era ir à casa dos tios, brincar na rua, imaginar mundos. A criação era firme, mas justa. Lá em casa, se havia um chocolate, era meio pra cada irmão. Todo mundo tinha uma tarefa, uma entrega, um papel. Aprendi cedo a lavar carro, a temperar frango, a acender carvão.
Éramos, sem saber, forjados na resistência. Antifrágeis.
E agora, ao olhar para os nossos filhos, vejo que criamos bolhas — e eles sofrem quando o mundo fura uma delas. Dói perceber que, ao tentar poupá-los das nossas dores, talvez tenhamos tirado deles as pequenas batalhas que ensinam a crescer.
O mundo perdeu a autoridade na educação dos filhos — e com ela, perdemos também a presença. Confundimos firmeza com autoritarismo e acabamos desautorizando os pais, os professores, os mais velhos. Tudo em nome da liberdade, mas esquecemos que criança sem limite não se sente livre — se sente perdida. Rompemos a hierarquia natural do cuidado e, com isso, ficamos sem chão e sem bússola.
O resultado está aí: filhos que não suportam a menor frustração, que não sabem esperar, que não conseguem conviver com o silêncio ou com o tédio. Escolas com medo de ensinar, que se calam diante da indisciplina, onde chamar atenção virou ofensa. E nós, achando que estamos “abalando”, quando na verdade estamos afundando. Porque uma educação sem raiz não cria asas — cria vazio. E nesse vazio, nossos filhos se perdem enquanto a gente ainda se pergunta: onde foi que erramos?