A escalada de feminicídios no Rio Grande do Sul continua alarmando autoridades e a sociedade. Em 2025, apenas em Bento Gonçalves, já foram registrados dois casos de feminicídio consumado. Os dados revelam mais do que números: apontam para um ciclo silencioso de violência que muitas vezes começa muito antes do primeiro tapa.

A Delegada Deise Salton Brancher, titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Bento Gonçalves, traz um retrato contundente da realidade enfrentada por muitas mulheres. “A maioria dessas mulheres são vítimas de violência doméstica familiar, assassinadas por seus companheiros, maridos ou ex-companheiros que não aceitam a separação. A maior parte delas não possui medidas protetivas. Algumas, sequer tinham registrado uma ocorrência policial antes de morrerem”, afirma Deise.

Sinais de alerta

Segundo a delegada, a violência raramente começa com a agressão física. “Ela se inicia com a violência moral, psicológica e patrimonial. É o sujeito que controla, que humilha, que subjuga, que inferioriza a mulher”, explica.

Esses primeiros comportamentos, muitas vezes desconsiderados ou naturalizados, já são sinais de um padrão perigoso, típico de um agressor que acredita ser superior à mulher. “Ao menor sinal de violência busquem ajuda, procurem as autoridades, registrem a ocorrência e solicitem as medidas protetivas”, reforça.

Delegada Deise destaca apoio da comunidade para as denúncias de violência como medida preventiva fundamental

Dados alarmantes

Em Bento, os casos registrados neste ano são especialmente brutais: uma mulher foi baleada pelo companheiro em plena via pública e outra foi morta a facadas pelo marido. Em ambos os casos, o cenário é o mesmo: ausência de denúncias formais ou medidas protetivas anteriores.

Relembre o primeiro caso do ano

Uma mulher de 31 anos, identificada como Erica Garces de Oliveira, morreu após ter sido baleada no bairro Juventude da Enologia, em Bento Gonçalves, no dia 29 de março. O crime aconteceu por volta das 7h30min na rua Tupanciretã, nas imediações do antigo Estádio da Montanha.

De acordo com informações da Brigada Militar (BM), a vítima, que é natural da Bahia, chegou a ser socorrida pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas não resistiu aos ferimentos. Ela teria sido baleada pelo agressor dentro de casa. A polícia foi alertada do fato por meio de ligações ao 190 relatando disparos de arma de fogo no local.

Ocorrência mais recente

O feminicídio foi registrado na tarde da Sexta-feira Santa, dia 18, no bairro Santa Rita, em Bento Gonçalves. Jane Cristina Montiel Gobatto, de 54 anos, foi assassinada com golpes de faca no pescoço pelo companheiro, um homem de 64 anos. O crime ocorreu por volta das 15h30min, na Travessa João Coser.

Equipes do Samu foram acionadas, mas Jane não resistiu aos ferimentos e morreu no local. A Brigada Militar prendeu o agressor em flagrante e apreendeu a faca usada no crime. Ele foi encaminhado à Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA) para o registro da ocorrência e permanece à disposição da Justiça.

A área foi isolada até a chegada do Instituto-Geral de Perícias (IGP). Foi mantida a prisão preventiva do assassino.

Este é o décimo assassinato do ano em Bento Gonçalves e o segundo feminicídio registrado na cidade em menos de 20 dias.

Violência recorrente

Os dados da DEAM mostram uma recorrência do crime ao longo dos anos: foram dois feminicídios em 2024, dois em 2023, dois em 2022, quatro em 2021, dois em 2020 e sete em 2019.

A delegada reforça que medidas protetivas são ferramentas eficazes e precisam ser mais utilizadas. “É através dela que o abusador recebe o chamamento do Estado de que ele não pode invadir as liberdades dessa mulher”, explica. Segundo ela, a maioria dos homens cumpre essas determinações judiciais. Ainda assim, muitas vítimas sequer chegam a solicitá-las, por medo, desinformação ou falta de acesso.

Novas ferramentas de denúncia

Além das mulheres poderem registrar ocorrência nas Delegacias de Polícia de Pronto Atendimento (DPPAs), na DEAM e também através do disk 180, que permite denúncias anônimas, inclusive feitas por terceiros, há a Delegacia de Polícia Online da Mulher, onde é possível solicitar medida protetiva de forma remota. A iniciativa é recente e visa diminuir os casos.

O único requisito é possuir cadastro no Gov.br. A medida é pensada especialmente para aquelas que não conseguem, por insegurança ou falta de meios, se deslocar até uma delegacia.

Se a mulher pedir a medida protetiva, o pedido é encaminhado ao poder judiciário, que em menos de 48h decide sobre o caso. Se confirmado, o agressor vai ser intimado. “A mulher também vai receber um encaminhamento para frequentar o Centro de Referência da Mulher que Vivencia Violência (Revivi). Ela vai receber um atendimento psicossocial, vai ser atendida por psicóloga e assistente social. Se ela tiver alguma demanda para as crianças ou para si mesma, vai ser auxiliada”, destaca Deise.

Além disso, Bento Gonçalves agora conta com uma estrutura de acolhimento segura para mulheres em situação de risco, inaugurada pela prefeitura neste mês. O espaço de abrigamento emergencial para mulheres é um serviço acionado pela rede de atenção à mulher.

O espaço funciona em uma ação da Secretaria de Esportes e Desenvolvimento Social (Sedes), Coordenadoria da Mulher e Centro Revivi fornecendo espaço de acolhimento com quarto, banheiro e cozinha para a mulher vítima de violência que não tenha para onde ir no momento em que estiver fazendo registro de ocorrência na delegacia. Ela permanece no local até o deferimento da medida protetiva.

Para a Coordenadora do Revivi, Patrícia Da Rold, o espaço amplia a rede de proteção à mulher vítima de violência e se agrega ao trabalho já realizado. Para ela, o tema precisa ser sempre debatido e a informação levada para todos os públicos. “O Centro Revivi sempre realiza ações de conscientização nas escolas, indústrias, comércio, igreja. É preciso todo o esforço para parar o ciclo da violência”, salienta.
Para a segurança das mulheres, o endereço do local não será divulgado, sendo acessado diretamente pelos órgãos de segurança.

Sala Lilás

O Município conta com a Sala Lilás, localizada na UPA 24h, destinada ao atendimento médico à mulher vítima de violência.
O espaço pode ser acessado pela busca espontânea ou acompanhada pelo Centro Revivi, DEAM ou Brigada Militar. Após o atendimento, o médico emite um comunicado de suspeita de violência à mulher para a rede de proteção.

Rompendo o silêncio

Apesar das redes de apoio, a delegada acredita que a omissão ainda é um dos grandes obstáculos no combate à violência doméstica. “Ainda existe muito aquela ideia de que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Isso é inadmissível nesse momento, com tantos feminicídios acontecendo, que alguém veja uma mulher sendo violada nos seus direitos e se omita. O cidadão tem o dever de denunciar todas as formas de violência contra quem quer que seja”, conclui a Delegada.

Canais de denúncia

  • Emergência 190
  • Disque denúncia 180
  • Guarda Civil Municipal 153
  • Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher 3453.9406
  • Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento 3452.3200
  • Patrulha Maria da Penha (54) 98423.2155 Coordenadoria da Mulher/Centro Revivi 3055.7420 ou (54) 99132.8148

Link oficial da Delegacia Online: https://www.delegaciaonline.rs.gov.br/dol/#!/delegaciadamulher/main