Durante o sono REM, que é o mais profundo, o inconsciente nos envia recados indecifráveis a olho nu. Mas hackers treinados – no caso, os que trabalham na área da Psicologia – são capazes de entrar neste sistema aparentemente inviolável e desmontar a criptografia dos sonhos. Obviamente não é tarefa fácil, já que o mundo onírico adora metáforas. E, para complicar, o inconsciente junta tudo no liquidificador, as experiências passadas, os medos, as dúvidas, as crenças, as culpas, as lembranças, as projeções…, bate bem e serve em imagens bizarras.

         Os meus sonhos, de tão malucos, nem Salvador Dalí conseguiria pintá-los. Embora não decifre a maioria deles, desconfio da origem de alguns… E é dentro desta perspectiva que vou contar a história de hoje…

         Agosto de mil novecentos e cinquenta e seis, mês dos cachorros loucos. O pânico em minha terra natal se instala com a notícia de que um enorme cachorro de cor acastanhada avança com o rabo baixo e cara de poucos amigos, sinais de que está com raiva, inclusive já deixando vestígios de baba pelo caminho… Embora sem watts nem telefone, uma espécie de rede global se encarrega de espalhar o pavor.

Nós, crianças de antigamente, que andávamos livres que nem passarinhos, nos fechamos dentro de casa. Foi uma espécie de lockdown do mês de agosto. Mas teve um dia em que resolvi enfrentar as restrições impostas pelo medo e ir até a casa de minha amiga. Estava chegando lá, quando, de repente, aparece o cão raivoso, correndo, grunhindo e salivando. Meu instinto de sobrevivência deletou o terror que devo ter sentido, diferentemente do inconsciente, que é uma espécie de “Google Earth”, que capta tudo e registra em três dimensões.  Por isso só me lembro de o pai da minha amiga apontar a espingarda para a fera, que já pulava degraus acima em direção à cozinha. O tiro foi certeiro, graças a Deus.

A operação limpeza demandou uma carrada de cinzas sobre o bicho morto e sobre o sangue espalhado. Ninguém queria correr o risco de se infectar com a doença mais temida na época.

Esse fato que marcou de forma indelével minha infância é um prato cheio para a produção de sonhos de terror, mas raramente consigo captar o recado. Então, num dia desses, li esta citação da psicoterapeuta Marie Louise V. Franz:

 “A dificuldade de interpretar nossos próprios sonhos é que não podemos ver nossas próprias costas”.  

Perfeito! É aí que entram os hackers, afinal sistema nenhum é completamente inviolável.