A fé é parte inseparável da identidade cultural trazida do além-mar pelos primeiros imigrantes que colonizaram nossa região. É por isso que, quase tão antiga quanto a chegada destes, é a Romaria de Nossa Senhora do Caravaggio, celebração originada em 1879, a qual se tornou uma tradicional demonstração de fé para dezenas de milhares de fiéis que, vindos de toda a Serra Gaúcha e mesmo de outras regiões, peregrinam anualmente para suplicar e ou agradecer as graças alcançadas. Prestes a completar sua 141ª edição, a festa deste ano pode, no entanto, ocorrer de forma inédita: virtualmente, de portas fechadas, sem caminhada e público. Decretada momentaneamente pela Diocese de Caxias do Sul, a possibilidade da “Romaria Online” se dá em respeito aos órgãos de Saúde que pedem que se evitem aglomerações como uma forma de se evitar a proliferação do novo Coronavírus.
Como explana o padre do grupo sacerdotal do santuário localizado em Farroupilha, Jocimar Romio, ao contrário de eventos esportivos culturais que têm sido cancelados ou adiados ao redor de todo o globo, a Romaria ocorrerá como sempre no dia 26 de maio, data em que, em 1432, a Nossa Senhora apareceu para a camponesa Joaneta, na cidade de Caravaggio, na Itália. “Não transferiremos a celebração, mas seguindo orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Ministério da Saúde, entre outros, já nos preparamos para o cancelamento da festa. As pessoas poderão, porém, acompanhar os atos religiosos de suas casas, pela internet”, pontua.
É realmente bem interessante falarmos em romaria online, pois o termo romaria vem da peregrinação a Roma, onde estão os restos mortais de São Pedro e São Paulo. E peregrinação, por sua vez, denota caminhar rumo a um lugar santo. Logo a palavra romaria denota movimento, mas se for impossível as pessoas virem até aqui, elas podem acompanhar tudo pela internet”
Segundo Romio, caso as medidas restritivas se mantenham até a data, as celebrações respeitarão as recomendações da Secretaria Estadual da Saúde, que permite no máximo a presença de 30 pessoas na Igreja. Assim, a ideia é que os atos religiosos contem apenas com o mínimo de pessoas necessárias para realizar as celebrações: um grupo composto por padres, bispos, leitores, religiosas, ministros e cantores. As missas, ainda sem programação ou número exato, serão transmitidas ao vivo por todos os canais de comunicação do Santuário, que incluem desde redes sociais, como o Instagram, Facebook e Youtube, até veículos tradicionais como emissoras de rádio e televisão. “Se as pessoas não tiverem como vir, elas acompanharão tudo pela internet. Mesmo que elas escrevam suas interações demonstrando sua fé, é necessário frisar que será só um acompanhamento, não uma interação direta. O que teremos, com certeza, é uma comunhão bonita de se ver. Uma comunhão espiritual, de súplicas e pedidos”, explana.
Embora a reitoria já tenha externado e trabalhe com a possibilidade de uma romaria online, o padre destaca que ainda é cedo para ter certeza. Faltando cerca de dois meses para a celebração, a organização da festa segue acompanhando as orientações dos órgãos de Saúde. Parte das já tradicionais pré-romarias — como a dos motociclistas, jipeiros, caminhoneiros etc. —, que costumam iniciar ainda em abril e antecedem a festividade de 26 de maio, já estão sendo oficialmente suspendidas. “Não há, ainda, um posicionamento oficial para todos. Algumas já estão canceladas, outras ainda temos dúvidas. Vamos esperar um pouco mais e ir definindo uma a uma. Entretanto não teremos nenhuma pré-romaria online. Esperamos que tudo se resolva, caso não, infelizmente elas não irão acontecer de nenhuma forma”, destaca.
A despeito do Governo Federal, o qual, contrariando orientações da OMS, já externou medidas para reabrir cultos e igrejas e templos religiosos, criando debates populares entre favoráveis ou não a abertura desses locais, Romio reforça a importância da ação adotada pela Diocese de Caxias do Sul e o respeito ao isolamento social. “Se os órgãos de saúde pública pedem o fim das aglomerações, pelo bem de todos, a gente está seguindo isso. Quando não sei algo de inglês, eu busco orientação com um professor de idiomas; se possuo algum questionamento sobre o conteúdo da fé, converso com um teólogo ou um padre; já se minha dúvida diz respeito à saúde, procuro um médico; temos que valorizar as competências de cada qual e obedecer às orientações daqueles que são mais qualificados que nós em suas áreas”, opina.
Um lema que versa sobre o presente
“Ó Maria, mãe compassiva, ajudai-nos a cuidar o dom da vida”. Embora possa parecer que tenha sido escolhido a dedo para ilustrar as implicações da pandemia que chegou a nossa região recentemente, o lema da 141ª Romaria de Nossa Senhora do Caravaggio se baseia na Campanha da Fraternidade. Apesar de mera coincidência, o padre também pontua o quanto a mensagem se tornou ainda mais impactante diante do momento em que vivemos, onde proteger a vida se tornou o principal dever de todos. “A vida é um dom e cuidar dela é uma responsabilidade de todos. A dignidade das pessoas e a valorização da vida vão desde a concepção até o seu fim natural. Todas as vidas importam e não podemos ser indiferentes a elas”, sublinha.
Compositor do hino da romaria, Leandro Ávila conta que, com exceção de alterações na primeira estrofe para que a mensagem versasse ainda melhor com a atualidade, a letra foi feita muito antes dos primeiros casos de Covid-19 na região. No entanto, assim como Romio, o músico também sublinha as relações dos versos com a pandemia. “Vejo o hino como uma verdadeira oração. Neste momento, essa música é um grito pela vida e pelo cuidado com o outro, pois essa doença colocou toda humanidade em um barco só. Com fé, vamos ter que voltar a nos enxergar como irmãos, lutando contra a indiferença, cuidando do dom da vida. Isso é o que diz o hino”, explana.
A Igreja na Era Digital
Se, em respeito às orientações do Bispo Dom José Gislon e às recomendações dos órgãos de Saúde Pública, visando conter a disseminação do novo Coronavírus, desde o dia 20 de março, as missas do Santuário de Caravaggio ocorrem de portas fechadas, sendo transmitidas diariamente pelas redes sociais e meios de comunicação, o uso da internet para se aproximar de novos e antigos fiéis não é novidade.
Segundo Ávila, que também é um dos responsáveis pela comunicação do Santuário, a igreja que conta com uma das rádios mais antigas da região e tem suas missas transmitidas em duas emissoras de televisão, começou a focar nas redes sociais há cerca de três anos. Presente nas mais populares delas, o alcance impressiona. Em janeiro, mês recordista em visualizações de conteúdo até o momento, entre todas suas mídias sociais o Santuário de Caravaggio teve 2 milhões de acessos virtuais, sendo mais de 1,4 milhões só no Facebook. “Para ter uma ideia, o terço que é rezado diariamente às 18h costuma ter uma média de 600 interações de fiéis. Não conseguimos ler todas no ar, mas vamos rezando junto com eles pela internet. Temos pessoas que nos acompanham de Portugal, da Espanha, da França, do Japão e do Brasil inteiro. As redes têm espalhado essa devoção”, comenta.
Transmitida por todos os canais de comunicação digital, além de televisionada para o Brasil e para Portugal, a última romaria atingiu pelo menos 620 mil pessoas em todo o mundo. Mediante a possibilidade de que a deste ano seja apenas pela internet, as ferramentas de comunicação, mais do que nunca, são celebradas como uma forma de acolher os fiéis. “Neste momento, em que temos que prezar pela saúde ficando em casa, a internet levará as mensagens de fé às pessoas. Mesmo de longe, a igreja segue um lugar de acalento, conforto e descanso para as almas. Por isso nossas missas seguem em modo online”, finaliza.
Secretaria de Turismo apoia o formato online
Um dos principais pontos do turismo religioso no estado, o Santuário de Caravaggio é a atração mais popular de Farroupilha, atraindo cerca de 2 milhões de visitantes anualmente, segundo dados da Secretaria Municipal de Turismo. A maior contração, como não poderia ser diferente, se dá no fim de semana da Romaria. No ano passado, estima-se que 130 mil pessoas estiveram presentes nos dois dias de celebração. Contando as pré-romarias, o número chega a 200 mil.
A possibilidade de que a romaria desse ano seja feita sem a presença de fiéis deve jogar essa média bem para baixo. Apesar disso, na avaliação do secretário de Turismo, Francis Casseli, a decisão da Diocese de Caxias do Sul, a quem compete manter ou não a programação, foi acertada. “Para o Poder Público a não-realização da romaria implica na redução de visitantes em nossa cidade. Mas a decisão não cabe a nós. Apesar disso, acho que fizeram o certo. Estamos em um momento em que devemos pensar na saúde e na vida de nossos cidadãos e também dos turistas”, opina.
Ele comenta, ainda, que é cedo para calcular os impactos, porém, acrescenta que o caminho, passado a pandemia, será trabalhar para fortalecer o turismo local e nacional em detrimento do internacional. “Não é só aqui, o setor será afetado globalmente. Acredito que o Ministério do Turismo e todos os órgãos Brasil terão que se empenhar para impulsionar o turismo interno, fortalecendo nossa economia. Mas isso tudo é assunto para o futuro, não temos nem como prever o dia de amanhã, quanto mais como será daqui três ou quatro meses”, pontua.
Linha do tempo da fé
. 1432: em um momento de conflitos políticos e religiosos, heresias e criminalidade, a cidade de Caravaggio, na Itália, estava dominada pelo caos. Foi em meio a esse cenário de devassidão que, no dia 26 de maio, a camponesa Joaneta presenciou um verdadeiro milagre. Enquanto colhia pasto em um prado próximo à cidade e fazia suas desesperadas orações, avistou uma senhora imponente e de olhar inegavelmente bondoso: era a Nossa Senhora. A Santa lhe deixou uma mensagem simples: ela afastaria de Caravaggio todos os castigos aos quais estavam destinados, entretanto, para isso seria necessário que o povo prestasse penitência, jejuasse às sextas-feiras e adotassem o hábito da oração. Joaneta tornou-se então missionária e levou às pessoas e seus governantes a mensagem redentora de Maria, que ficou conhecida posteriormente como Nossa Senhora de Caravaggio;
. 1879: idealizando criar um oratório, os imigrantes Antônio Francesquet e Pasqual Pasa construíram um pequeno galpão de madeira, em frente ao lugar onde hoje está o cemitério de Caravaggio; com a ajuda de vizinhos, aos poucos, o espaço foi transformado em uma capela com capacidade para 100 pessoas. Inicialmente, a comunidade decidiu homenagear Santo Antônio, mas como já havia uma festa em honra a ele em Dona Isabel, optaram por Nossa Senhora de Loreto. Após inúmeras viagens infrutíferas em busca de uma imagem da santa, o morador Natale Faoro emprestou um quadrinho com a imagem de Nossa Senhora de Caravaggio que tinha em casa. Surgia então a devoção à santa em nossa região;
. 1899: nove anos após a inauguração da primeira igreja, é relatado o primeiro milagre da Santa na Serra Gaúcha. Diante de uma estiagem severa que castigava as plantações e secava os riachos, o povo se uniu para pedir ajuda em uma procissão de penitência. Ao fim do dia, quando retornavam às suas casas, o céu, até então limpo, se fechou e se iniciou uma chuva torrencial;
. 1940: com a notícia do milagre se espalhando pelas comunidades, o ato de peregrinação de fiéis se multiplicou ano após ano. Na década de 1940, a romaria já reunia pelo menos 10 mil pessoas. Quatro anos depois, a imagem também começa a peregrinar por cidades como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Canela, entre outras, multiplicando a fé na Santa;
. 2019: a 140º romaria atrai, em dois dias, mais de 130 mil devotos. Outros 620 mil acompanham as celebrações pela internet, rádio e televisão.