Um estudo aprofundado sobre os impactos das chuvas extremas e deslizamentos de terra na Serra Gaúcha, ocorridos entre abril e maio de 2024, revela uma perda considerável de matéria orgânica nos solos de áreas produtoras de uva e pêssego

O “Diagnóstico da fertilidade do solo em áreas agrícolas atingidas por deslizamentos” foi realizado pelo Grupo de pesquisa em Predição da Adubação e Potencial de Contaminação em solos (GEPACE), conduzido pelo pesquisador Gustavo Brunetto, coordenador de Pós-Graduação em Ciências do Solo (PPGCS) da Universidade Federal de Santa Maria pesquisadores e estudantes da UFSM em parceria com a Cooperativa Vinícola Aurora e a Associação dos Produtores de Frutas de Pinto Bandeira (Asprofruta). O estudo aponta que, apesar de outros nutrientes terem se mantido em níveis adequados, a recuperação dessa camada fértil será o maior desafio para a agricultura local.
O estudo apresentado na sede da Aurora na quinta-feira, 28 de agosto, visa possibilitar aos produtores opções para a recuperação do solo das áreas degradas pelas enchentes.

Pesquisa e análise

Laura Dunker, aluna de mestrado do programa de pós graduação em ciência do solo da UFSM

Laura Dunker, aluna de mestrado do programa de pós graduação em ciência do solo da UFSM, e integrante da pesquisa, esclarece que o estudo teve como base os municípios de Bento Gonçalves, Pinto Bandeira, Monte Belo do Sul e Santa Tereza. Ela explica que o grupo iniciou as atividades de coleta de solo em agosto de 2024, analisando amostras em diferentes profundidades – de 0 a 5 cm, 10 a 20 cm e 20 a 40 cm – para entender a composição do novo material depositado pelos deslizamentos. Essas análises foram realizadas no laboratório da UFSM, gerando dados que compõem um capítulo de um livro sobre “Resiliência e Sustentabilidade”, lançado em março de 2025.
A pesquisadora, seguindo o estudo, revela que a matéria orgânica foi o componente mais afetado. O novo material que recobre as áreas agrícolas é, em grande parte, desprovido dessa substância vital, que fornece nutrientes como nitrogênio, que é fundamental para a melhor estrutura do solo e aumenta a capacidade de retenção de água. “A matéria orgânica que tinha, tanto na mata nativa quanto no vinhedo, foi removida e levada para as áreas de rios e várzeas”, afirma.

Allan Kokkonen aluno de doutorado do programa de pós graduação em ciência do solo UFSM

Allan Kokkonen aluno de doutorado do programa de pós graduação em ciência do solo UFSM, e integrante da pesquisa, destaca que esse novo solo, por ser mais fino e ter perdido sua estrutura, tende a sofrer mais tanto na seca, por não reter água, quanto na chuva, por ser mais propenso a novos deslizamentos. Apesar da preocupação com a matéria orgânica, o diagnóstico trouxe um alívio em relação a outros elementos. A pesquisa aponta que os níveis de potássio, cálcio, magnésio e o pH não sofreram alterações significativas e, em alguns casos, subiram. “Em resumo, esse material que cresceu, na parte química dos nutrientes, ele não está ruim. Então, em alguns casos não há necessidade de repor”, elucida. O estudo também notou uma queda nos níveis de fósforo na superfície, mas a média geral ainda se mantém adequada, pois os vinhedos da região já possuíam teores elevados do nutriente.
Entretanto, para que medidas possam ser tomadas, os alunos pesquisadores ressaltam a necessidade de análise de solo antes da aplicação de qualquer produto. “Se eu quero saber da minha área, eu preciso fazer uma análise do solo específica”, ressalta Kokkonen.
A recomendação geral é evitar a aplicação de calcário sem um diagnóstico prévio, pois o pH dos novos solos não necessariamente demanda correção. O especialista adverte para o risco de problemas com nutrientes caso se aplique o corretivo de forma desnecessária.

Características da região

A complexidade da tarefa reside na própria natureza dos solos da região. A mestranda Laura Sotobudo, responsável pelas coletas, explica que o Rio Grande do sul é composto predominantemente por neossolos litólicos, neossolos regolíticos e cambissolos. Os litólicos são solos rasos, com contato direto com a rocha-mãe a até 50 centímetros de profundidade, limitando o desenvolvimento das raízes e, consequentemente, a estabilidade do terreno. Já os regolíticos, apesar de também rasos, contêm a chamada “rocha podre”, que permite a infiltração de raízes e confere maior estabilidade. Os cambissolos, mais profundos, também são mais desenvolvidos e permitem um maior crescimento radicular, contribuindo para a manutenção da estrutura do solo. Exatamente pela Serra Gaúcha ser composta por neossolos litólicos e neossolos regolíticos é que existe esta maior propensão aos deslizamentos, pois não possuí uma formação de estrutura firme. Com o peso da água e da vegetação, este acaba deslizando.
Segundo a especialista, o material depositado pelos deslizamentos, que em alguns locais alcança até um metro e meio, alterou drasticamente as características originais dessas áreas, trazendo materiais lixiviados (que foram separados e ‘lavados’ com a água, separando, por exemplo, a areia da terra) de outras áreas.

Recuperação de áreas degradadas
Brunetto destaca que a grande preocupação é, de fato, a matéria orgânica. Este é o componente mais difícil de ser reposto no solo, mas sua presença é fundamental para a fertilidade, a estrutura e a capacidade de retenção de água. A perda desse elemento torna o solo mais vulnerável tanto à erosão por novas chuvas quanto à compactação e ao estresse hídrico em períodos de seca. “Se perdeu um pouco do fósforo, vou lá e aplico. Se perdeu um pouco do cálcio, preciso repor. A matéria orgânica, não. Não consigo ir, ‘aplicar a matéria orgânica’ de solo. Eu preciso recuperá-la de forma gradual”, afirma o especialista.
Diante do cenário, a equipe de pesquisa faz um alerta crucial: não há uma solução única. Cada área precisa de um manejo específico. “Se eu quero saber da minha área, eu preciso fazer uma análise do solo específica”, ressalta Brunetto.
Após as perdas de matéria orgânica diagnosticadas nos solos da Serra Gaúcha, as estratégias para a reconstrução da fertilidade e da estrutura do solo se voltam para uma combinação de práticas de manejo tradicionais e o uso de tecnologias de ponta. Diante desse cenário, uma das principais recomendações é o uso de resíduos orgânicos, como dejetos de animais e compostos. Segundo Brunetto, a Serra Gaúcha tem uma oportunidade estratégica com a produção animal, que gera a matéria-prima para esse tipo de adubação. Ele ressalta, no entanto, a necessidade de equilíbrio, pois o resíduo orgânico é frequentemente desbalanceado em suas proporções de nutrientes, exigindo a complementação com adubos industrializados para garantir uma nutrição completa e precisa para a planta. A dose, o momento e a fonte dos nutrientes devem ser definidos por um profissional, que precisa considerar as particularidades de cada área.
Para um diagnóstico mais preciso, o professor sugere a separação e áreas em glebas homogêneas, considerando topografia, histórico de cultivo, cor e textura do solo, bem como a separação estratificada de até 20 cm de profundidade. “É bacana fazer uma análise com 10 cm, então de 10 a 15 cm e por fim de 15 a 20 cm. Assim vai ser possível verificar o quanto aquela camada foi impactada, como realizar o tratamento mais adequado e a quantidade”, esclarece.
Outra prática com impacto significativo é o uso de plantas de cobertura, uma tradição forte no Rio Grande do Sul. O pesquisador explica que essas plantas, com seus sistemas radiculares, adicionam carbono ao solo e atuam como uma barreira física contra a erosão, segurando o terreno e aumentando a infiltração de água. Ele adverte ainda contra o dessecamento dessas plantas, prática que considera um desperdício de potencial e de investimento, já que pesquisas demonstram que elas não competem com a videira por nutrientes em solos bem manejados.
Esta estratégia, em associação com o uso de resíduos orgânicos, pode acelerar a recuperação da matéria orgânica e o carbono do solo, que, segundo o especialista pode levar de 15 a 40 anos para recuperar-se naturalmente. “Isso é um dado super relevante. A gente tem que ter dados para fazer esse cálculo. 15 a 40 anos fazendo um manejo adequado”, elucida o pesquisador.
Além da necessidade da estabilização dos níveis de carbono do solo, Brunetto defende a necessidade de aplicação de outros materiais como o boro, para o qual seria necessária uma análise de folha, para uma melhor verificação dos níveis da substância na planta.

Opções para evitar deslizamentos
A tecnologia do terraço patamar, tradicional em nosso estado, também é apontada como uma solução eficaz para diminuir perdas. A técnica, que consiste em criar degraus no terreno, quebra a velocidade do escoamento da água, promovendo sua infiltração e reduzindo a erosão. Embora o revolvimento do solo no processo torne a calagem mais desafiadora, a prática mostra-se fundamental para aumentar a resiliência das áreas mais inclinadas, pois a técnica diminui a velocidade da água no solo, minimizando a erosão e favorecendo sua infiltração, contribuindo para a melhor absorção da planta. Para o futuro, o professor aponta o uso de tecnologias como drones para mapear solos, monitorar o estado nutricional das plantas e até mesmo prever a produção e a qualidade da uva. A meta é fornecer informações detalhadas para que técnicos e produtores possam tomar decisões ainda mais assertivas.
Atualmente, Brunetto ressalta a importância do conhecimento e da interpretação de resultados, indicando dois livros já elaborados pela GEPACE sobre o manejo e fertilidade: Manual de calagem e adubação e Atualização técnica sobre calagem e adubação em frutíferas.

Parceria com Aurora

Gustavo Brunetto, Laura Dunker, Renê Tonello, presidente do Conselho de Administração da cooperativa Vinícula Aurora, Allan Kokkonen e Mauricio Bonafe, engenheiro-agrônomo e coordenador agrícola da empresa

A apresentação dos resultados, realizada na sede da Aurora contou com a presença de Renê Tonello, presidente do Conselho de Administração da empresa, e Mauricio Bonafe, engenheiro-agrônomo e coordenador agrícola da Aurora, que agradeceu aos pesquisadores pelo empenho. “O professor e sua equipe tiveram um ação rápida, decorrida daquela situação do desastre climático, acontecido há mais ou menos um ano e meio atrás. Então nos tivemos essa parceria e, além disso, tivemos uma verba especifica para a pesquisa, juntamente com o governo, para essa pesquisa, e que agora será difundida, o que foi feito de trabalho, e de como superar os ocorridos daquele ano atrás”, afirma.
Segundo Bonafe, a colaboração com a UFSM surgiu de uma necessidade interna da cooperativa em obter dados mais criteriosos sobre a fertilidade dos solos da região. “A parceria surgiu, na verdade, por uma demanda da própria cooperativa em buscar alguém que a gente pudesse se espelhar, se basear, ter informações de fato mais criteriosas perante a fertilidade de solo”, explica Bonafe. A escolha pelo professor Brunetto se deu após uma análise do cenário regional, que apontou o pesquisador como uma das principais referências no tema.
A aproximação entre a Aurora e Brunetto resultou na ampliação de pesquisas na Serra Gaúcha, onde anteriormente havia apenas trabalhos pontuais com algumas culturas e produtores. “Incrementamos esse trabalho e, para nós, tem sido muito satisfatório, porque estamos tendo informações técnicas e muita coisa de novidade, que nós não tínhamos aqui na região”, destaca Bonafe.
Essa produção de conhecimento técnico se tornou ainda mais relevante diante dos eventos climáticos extremos que afetaram diretamente os associados da cooperativa. Conforme o engenheiro, 86 famílias foram atingidas pelas chuvas, com perdas estimadas em cerca de 75 hectares de vinhedos, em diferentes intensidades, devido a deslizamentos. “As famílias afetadas serão beneficiadas pela pesquisa para obter auxilio na reconstrução do seu vinhedo”, finaliza.
A Aurora já iniciou o processo de disseminação dos dados obtidos nas pesquisas. As informações são repassadas à equipe técnica, que, por sua vez, visita os produtores para orientá-los sobre as melhores práticas de recuperação do solo.