Quase extinta no Brasil devido ao avanço da industrialização e da produção em massa, a prataria, uma das artes mais antigas do mundo, ganha vida pelo esforço e pelas talentosas mãos do artista bento-gonçalvense Raul Sartor Filho, de 40 anos.
Hoje, como único prateiro da cidade, ele se dedica não só em criar novas obras, mas também a ensinar e divulgar o ofício. A meta, conforme conta, é promover e difundir a profissão que ajudou a resgatar para que ela não corra o risco de desaparecer outra vez.
Encontro de Prateiros
Foi justamente com o intuito de promover e divulgar essa arte tão pouco comum ao público brasileiro contemporâneo que Filho, com o apoio do filantropo e incentivador da arte e cultura Darci Poletto, de 74 anos, criou o primeiro Encontro Internacional de Prateiros no país. Como prova, não só do bom recebimento da atração, mas, sobretudo, do sucesso em impulsionar essa cultura, que recém em sua segunda edição, o evento já tem de tudo para ser um dos maiores da América Latina no setor.
De acordo com Poletto, o 2º Encontro Internacional de Prateiros, que ocorre na Fundação Casa das Artes, de 10 a 13 de outubro, irá muito além de uma simples exposição artística. Para integrar curiosos, prateiros profissionais e iniciantes, o encontro contará também com uma programação diversificada. “É mais que um simples evento, é um intercâmbio cultural. Ao longo desses quatro dias, vamos ter oficinas para os participantes, lançamento de livro, demonstrações de técnicas, palestras e um show nativista. Tudo de graça”, enumera.
Muito além do cronograma, conforme adianta Filho, quando comparado ao último, o segundo encontro também evoluiu em número de artistas, técnicas e obras. “Ano passado tivemos prateiros nacionais e da Argentina, neste segundo encontro vamos trazer artistas de cinco países da América Latina (Chile, Bolívia, Peru, Argentina, Uruguai e Brasil). Vão ser 35 artistas, 11 a mais que o último, e uma diversidade de peças ainda maior, com técnicas únicas próprias da cultura de cada nacionalidade”, conta.
Embora o segundo evento ainda não tenha sequer começado, a dupla já projeta o terceiro, divulgando, cada vez mais, a tradição e arte da prataria. Entre as prospecções, segundo contam, para a edição já programada para 2021 — os encontros serão revezados um ano em solo argentino e outro no Brasil, conforme acordo entre os prateiros dos dois países, de forma que o próximo será na Argentina —, a ideia é contar também com artistas europeus, onde a arte é milenar.
A arte de Raul
A boina na cabeça e o mate sempre em mãos, nos intervalos entre cada um dos inúmeros e cuidadosos processos de produção de suas obras, deixam evidente o gosto de Filho pela cultura tradicionalista. Não é de se estranhar, portanto, que foi justamente por sua inserção nesse meio, que o bento-gonçalvense acabou conhecendo e resgatando a arte da prataria que já foi muito manifesta na cultura nativista, na Argentina, no Uruguai e no sul do Brasil, onde quase desapareceu.
Presente sempre em rodeios e no meio tradicionalista, no ano 2000, apresentado e ensinado por amigos, Filho começou a trabalhar com a guasqueria, ou seja, com couro. Foi exercendo essa atividade que, certo dia, ao querer fabricar um cinto para presentear o irmão, acabou sentindo a necessidade de usar metal para a confecção da fivela. “Comecei a buscar profissionais para fazer essa peça, mas não conseguia achar nenhum que aceitasse. Até que encontrei um primo joalheiro que me deu as primeiras dicas e me emprestou algumas ferramentas. Eu esculpi a fivela em cera e ele fez toda parte de fundição e acabamento”, lembra.
Após o sucesso dessa obra, quase que naturalmente, o artesão seguiu se aperfeiçoando e, aos poucos, por meio de seu trabalho fez renascer o ofício de prateiro. “Já que a primeira deu certo, fiz outra e outra. Como eu estava sempre envolvido em rodeio, o pessoal começou a enxergar, se interessar e fazer pedido. Com a internet comecei a conhecer artistas de fora de países como Argentina, onde essa cultura nunca deixou de existir, e fui trocando ideia e melhorando”, conta.
Hoje, cerca de uma década depois de começar a se dedicar estritamente ao ofício, Filho dá até aulas de prataria e suas obras já atravessaram fronteiras e mesmo o mar, estando presentes nos Estados Unidos, Espanha, Suíça, Omã, Catar, Uruguai e Argentina.
A primeira escola de prataria do Brasil
Apaixonado pela profissão que descobriu e acabou exercendo, Filho comentava entre amigos que antes dos 50 anos fantasiava em abrir uma oficina para passar seus ensinos adiante, mantendo a cultura do prateiro viva. O sonho foi realizado antes mesmo dos 40, em 2017, com o apoio do recém-conhecido, amigo Poletto.
Conforme eles contam, foi ao encomendar uma peça com Filho que Poletto, admirador da arte, conheceu a prataria e resolveu se empenhar com o novo amigo para divulgar essa tradição tão esquecida. Foi assim que, o filantropo, conseguiu locar um espaço no porão para montar uma oficina e inaugurar a Primeira Escola de prataria do Brasil, nomeada de “Santo Elói”, em homenagem ao santo protetor dos prateiros e ourives.
Ao longo de dois anos, cerca de 50 alunos de todo o Brasil já passaram pelo lugar. E sob a benção de Elói e os esforços de Filho e Poletto, a quase extinta arte parece ter renascido de vez. Prova é, como conta orgulhoso o prateiro bento-gonçalvense, que dez de seus alunos seguem na profissão e vão expor seus trabalhos no 2º Encontro Internacional de Prateiros.
A prataria no Brasil: da abundância à decadência
Com o avanço da industrialização e da produção em massa, bem como com a mudança de hábitos, conforme destaca Filho, os prateiros foram minguando. “Quando a indústria começa a produzir em série, a demanda por produtos manuais some do mercado. Com o tempo, conforme a população foi substituindo suas peças de sustentação, a prataria ficou no caminho. Se antes, as peças em prata eram objetos de ostentação, hoje esses itens são os telefones, os carros”, assinala.
Mas se por décadas a prata sobreviveu apenas como peça de antiquário, ela já chegou a fazer parte da cultura brasileira. Como fruto do estilo de vida suntuoso dos portugueses, o ofício do prateiro se disseminou no país desde as primeiras décadas de colonização. E é por motivos semelhantes, que a prataria também se enraizou na cultura gaúcha. “Antigamente, era de bom gosto convidar os amigos para ir a casa tomar um chá, fumar um charuto e oferecer o melhor da prataria nesse momento. Da mesma forma, o gaúcho podia ter um casebre de barro e capim santa fé, mas andava sempre com a melhor pilcha com muita prataria no cinto, em facas”, conta.