Andaram fuxicando no passado de Clarice e descobriram um deslize. Confesso que fiquei chocada. Então esta linda mulher que se abastecia “de luz e, às vezes, de trevas”, que não tinha medo “de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas”, para quem liberdade era pouco, também tinha defeitos… Até tu, Clarice?
Ok, poderíamos cortá-los, mas como ela própria alertou, “pode ser perigoso, pois nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”.
Depois do primeiro impacto, racionalizei e segui o seu conselho: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.”
Estou tentando, grande Clarice! Se tens “toda a aparência de quem falhou”, só tu sabes “se foi a falha necessária”. E, se te “entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato… ou toca, ou não toca”, então tudo certo, porque a gente já foi tocada na “Hora da Estrela”, bem “Perto” do teu “Coração Selvagem”.
A, sim, a “falha”… Clarice meio que se vendeu nos anos sessenta (dizem que todo mundo tem preço, não é verdade?!). Divorciada e com filhos para sustentar, a grande escritora aceitou escrever, numa revista só de mulheres, receitas culinárias, regras de etiqueta e ensinamentos para agradar aos homens e reverenciá-los.
Analisando o contexto, fica claro que a resiliência de Clarice resultou da necessidade. Escondida nos pseudônimos, ela se submeteu aos ditames da época, por uma questão de sobrevivência e não de subserviência.
Mesmo no quadradinho destinado às mulheres, ela se remexia inquieta, e, sempre que podia, mesclava seus textos com sutilezas, afinal “já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”.
Mas até pelo seu pecado, Clarice continua tão importante. Ela nos faz pensar nas contradições humanas e como somos enigmas para nós mesmos, “nem entendendo aquilo que se entende…”.
Fácil é julgar alguém pelas aparências, sem a análise de todas as facetas, em todos os ângulos e contextos. A visão de cada um gritada como verdade “verdadeira” pode, na verdade, ter sido ofuscada pela paixão… ou por uma miopia miserável mesmo, metaforicamente falando.
Mas esse já é outro papo…