Para o advogado, escritor e radialista, a luta é constante e, apesar dos avanços, o caminho para a plena inclusão e respeito aos direitos da população negra está longe de ser concluído
O 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é um marco significativo para o Brasil, instituído após a iniciativa do Grupo Palmares, fundado em 1971 por Antônio Carlos Côrtes e outros militantes, como Oliveira Silveira, Ilmo Silva, Vilmar Nunes, José Antônio dos Santos e Luiz Paulo Assis Santos. Essa data foi escolhida em homenagem a Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência negra contra a escravidão, e tem sido uma importante ocasião para refletir sobre o legado este episódio e os desafios enfrentados pela população negra no Brasil. A partir dessa perspectiva, entrevistamos o próprio Côrtes para discutir a evolução da luta negra no país, as conquistas obtidas e os desafios que ainda precisam ser enfrentados.
Côrtes, que participou ativamente da fundação do Grupo Palmares e da luta pela validação da data, compartilha sua visão sobre o impacto da oficialização do 20 de novembro. Para ele, esse marco não é apenas uma data de celebração, mas um momento de reflexão sobre as conquistas e os desafios que a população negra ainda enfrenta no Brasil.
Embora o Brasil tenha avançado em algumas áreas, Côrtes aponta que o racismo estrutural continua a afetar profundamente a sociedade brasileira. Segundo ele, é preciso implementar políticas públicas que promovam uma verdadeira inclusão social, além de garantir a igualdade de oportunidades para a população negra.
A escolha do 20 de novembro, ao invés do 13 de maio, tem um peso simbólico forte para Côrtes e seus colegas do Grupo Palmares. Para ele, a Lei Áurea, assinada no 13 de maio de 1888, foi um marco importante, mas não acompanhada de políticas públicas eficazes para garantir a verdadeira liberdade e a inclusão dos negros na sociedade brasileira.
A violência contra negros, em especial a violência policial, é um dos maiores problemas enfrentados pela população negra. Côrtes acredita que mudanças estruturais nas forças de segurança e em políticas públicas voltadas para a população negra são essenciais para reduzir essa violência e garantir a proteção dos direitos humanos.
Côrtes é enfático ao dizer que a representatividade negra em espaços de poder e decisão é essencial para garantir que as políticas públicas realmente atendam às necessidades da população negra. Ele sugere que o Brasil invista mais em programas de inclusão e formação de lideranças negras para cargos estratégicos, como no judiciário, na política e nas forças armadas.
Ao longo das últimas décadas, Côrtes observa que, apesar de avanços como as cotas em universidades e políticas de inclusão, o Brasil ainda enfrenta grandes desafios na luta pela igualdade racial. Para ele, a luta continua, mas alguns avanços significativos, como a maior visibilidade de questões raciais e o surgimento de políticas públicas, têm sido vitais para dar visibilidade à luta negra.
A autoestima da população negra é um tema recorrente nas falas de Côrtes, que defende que a valorização da cultura negra e sua representação em espaços culturais, educativos e midiáticos é essencial para fortalecer a identidade e autoestima da comunidade negra no Brasil. Ele sugere que a educação antirracista, além da presença de mais negros na mídia e cultura, seria fundamental para alcançar esses objetivos.
Côrtes critica o ensino da história no Brasil, especialmente em relação à escravidão e ao legado de Zumbi dos Palmares, apontando a falta de uma abordagem crítica e verdadeira nos currículos escolares. Para ele, é fundamental que as escolas abordem com profundidade a história da escravidão, o impacto duradouro do racismo e a contribuição dos negros na formação do país. Além disso, ele defende que é necessário incluir figuras históricas como Zumbi dos Palmares de maneira mais proeminente no ensino da história.
Entrevista
Semanário – Quais mudanças concretas o senhor acredita que ainda são necessárias para combater o racismo estrutural que persiste no país?
Côrtes – O dia que o Brasil admitir que estes mais de 70% da população brasileira devem ser incluídos, nos tornaremos uma potência. Nós, do Grupo Palmares, ficamos em três eixos na sua criação. O primeiro eixo é o que diz respeito ao Partido das Panteras Negras dos Estados Unidos, do qual nós nos inspiramos, o Black Power. E lá o que eles brigavam? Por educação, diminuição ou redução da violência policial contra os jovens negros, diminuição da desigualdade social. O documento de 1712, a carta de Williams, era um escravocrata americano que ensinava os demais exploradores de escravos a como manter os escravizados domesticados, como ele dizia. E esses extratores da maldade permanecem até hoje.
Semanário – Na sua opinião, porque o 20 de novembro, em vez do 13 de maio, se tornou tão significativo para a luta da população negra?
Côrtes – O dia 13 de maio de 1888 simplesmente teve dois artigos da Lei Áurea. Artigo primeiro, estabolida a escravidão no Brasil. Artigo segundo, revoga suas disposições em contrário. Não tinha uma justificativa do que seria feito com aqueles cinco milhões de escravizados negros que aportaram lá no Casvalongo, no Rio de Janeiro, e foram espalhados por todo o país. Neste momento, ainda não foi enfrentado pelo Brasil.
Semanário – O senhor tem falado sobre a importância da visibilidade da comunidade negra em espaços de poder, como o governo, o judiciário e as forças armadas. O que o senhor acha que pode ser feito para garantir mais representatividade nesses setores?
Côrtes – Defendo a teoria que devemos ocupar todos os espaços possíveis com a valorização do negro, principalmente naqueles onde não são aceitos que haja uma conscientização desse despertar. A consciência de uma doença dos não-negros é que nos leva à cura. Essa consciência precisa ser despertada. O não-negro não basta que ele não seja racista, é preciso que ele seja antirracista.
Semanário – Como você vê o avanço ou retrocesso da luta por igualdade racial nas últimas décadas?
Côrtes – Os avanços são muito pequenos. É necessário um despertar. Quem olha para fora vê, quem olha para dentro enxerga. As medidas de avanços precisam ser coletivas. Eu digo mais, quando o Brasil começou na exploração do negro, o negro avançou muito no que diz respeito à cultura econômica do país. O negro trabalhou na cana-de-açúcar, no café, no algodão, nas charqueadas, no que diz respeito àquela época em que a carne precisava ser salgada na preservação. Nessas charqueadas, notadamente de Pelotas, muitos escravizados negros perderam as suas mãos e seus dedos, seus braços, pelo uso indevido do sal sem proteção. Como diria o sociólogo Clóvis Moura, como é que o negro de excelente escravo passou a ser mal cidadão? Em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, começaram a política no campo socioeducativo, um trabalho da então primeira-dama Ruth Cardoso. Mas, de lá para cá, as inclusões foram muito, eu diria, muito reduzidas. Porque, como dizia o fotógrafo e jornalista Januário, os negros existiriam no mundo sem o Brasil, mas o Brasil não existiria sem os negros.
Semanário – Quais medidas ou iniciativas o senhor acredita que poderiam ser mais eficazes para fortalecer essa autoestima e identidade no Brasil?
Côrtes – Quando se fala em inclusão social, precisa lembrar que quem hoje quer incluir foi quem ontem excluiu. O Brasil só será realmente uma grande nação o dia que, procurar reparar no que diz respeito à educação, tem a Lei que obrigou o ensino da cultura africana no Brasil e a cultura do negro no Brasil. Só que essa lei não foi implementada na realidade, ficou no papel que poucos avanços foram obtidos nesse sentido. Então, ela precisa de uma releitura, porque não existe povo no presente que não conheça o seu passado.