Você bem sabe que com a chegada do Natal chega junto um punhado de lembranças.Podem ser lembranças alegres ou tristes, mas isso pouco importa nesse meu conto de Natal que reescrevi e faço chegar novamente até você

Também mantenho vivas algumas natalinas recordações. A expedição familiar para buscar barba de pau num matagal próximo de casa. O presépio no canto da sala, com o menino Jesus de louça aninhado na palha de trigo. Os reis magos de sabugo de milho. As ovelhas de barro cozido. O alto custo para financiar o sono na espera ansiosa pelo Menino Jesus que viria montado num burrinho. O presente em meio à barba-de-bode: uma bola de plástico tão duro que desafiava a integridade física de pés de meninos habituados a encontrar pedras no escuro com a unha do dedão.

Você que está abaixo da linha divisória dos quarenta, não junta ideia do tema. Talvez esteja torcendo o nariz com impaciência a esse assunto cheirando à naftalina. Mais provável é que esteja se preparando para saltar fora desse baú repleto de coisas antigas.

Apesar disso, continuo em frente.

Um dos primeiros natais de que guardo lembrança, andava eu pelos cinco anos de idade. Nessa lembrança tem um galo. Não era o Galo de Barcelos, símbolo nacional de Portugal e que se encontra em lojas para turistas, nas peças em barro.

O galo das minhas primeiras lembranças é um galo de cor avermelhada, com uma crista de serra imponente, barbelas separadas semi-circulares e dois olhos permanentemente furiosos. O meu galo se parecia com um general altivo e confiante, indo para a guerra.

O meu galo tinha nome de general: Napoleão Bonaparte.

Tínhamos uma relação hostil, Napoleão e eu. Quanho punham o trigo para secar ao sol do meio-dia, sobre lençóis velhos estendidos no quintal de casa, cabia a mim a tarefa de vigiar para que nenhum inimigo viesse atacar a nossa provisão de grãos para o ano todo.

Claro que Napoleão me dava um trabalho danado. Costumava marchar em direção ao trigo com uma arrogância imensa e um orgulho estúpido. O mais grave era que eu morria de medo de ser atacado por Napoleão. Andava sempre com quatro e cinco pedras no bolso e uma vime na mão, comprida como a Missa do Galo. O limite da vime era a tolerância de aproximação permitida. Às vezes, porém, Napoleão com sua imbecilidade autosuficiente avançava o limite e me atacava com bicadas doloridas.

Eu morria de medo do galo que gostava. Gostava de vê-lo rufar as asas megâlomanas, alongar o pescoço cilíndrico e cantar tão alto que fazia tremer tudo a sua volta.

Napoleão era respeitadíssimo entre os de seu exército. Ai se um outro galo ousasse ciscar ou arrastar asas a uma de suas inúmeras namoradas. Não escapava de levar uma surra magistral e inesquecível. Saia-se vitorioso em todas as batalhas que travava. Dava gosto de assistir a valentia de Napoleão.

Pouco antes do Natal, porém, assisti, involuntariamente, um dos mais tristes espetáculos da minha infância. Nunca mais consegui esquecer minha mãe em frente ao galinheiro, com uma mão prendendo as pernas e com a outra segurando o pescoço de Napoleão. Em seguida, torceu e quebrou-lhe o pescoço. Napoleão ainda tentou agitar as asas desesperadamente, mas foi em vão.

No dia seguinte, sopa de caldo e o prato de lesso na mesa.

Agora, com a chegada do Natal, ouço, em algum lugar do meu coração, o canto grandioso de Napoleão anunciando um novo dia.

 

flavio@flavioluisferrarini.com.br