Praticamente emudecido pelos sons do trânsito, o apito melancólico de um trem de carga ressoa todos os dias na Região do Rio das Antas, sendo percebido somente pelos ouvidos mais atentos. O trem, atualmente pertencente a uma companhia de logística paranaense, é apenas um resquício do que foi um passado pungente da malha ferroviária em nossa cidade.
O mato que cresce entre os dormentes apodrecidos e trilhos tomados pela ferrugem deixa claro o abandono e o esquecimento do legado deixado pelo suor de milhares de pessoas no ano de 1960. Entre elas está Nelson Bassani, 73, que trabalhou na construção dos trilhos além de ter sido um dos primeiros maquinistas a operar na região, e hoje, assiste desiludido o abandono da obra que ajudou a construir.
Um retorno ao passado
As mãos apontando para o painel de uma das Marias Fumaças em reparo, na garagem ao lado da estação, e o tom agitado com que explica o funcionamento da caldeira, dos freios e dos medidores de pressão, deixam claro as emoções reavivadas em Bassani na cabine de um trem, ambiente semelhante ao que costumava trabalhar há 50 anos. “Dá muita saudade mesmo”, comenta ao se afastar, enquanto, por cima dos ombros, dá uma última olhada para a máquina.
Bassani foi um entre as centenas de soldados do 1º Batalhão Ferroviário designados a construir, com a ajuda de civis, o Tronco Sul, malha ferroviária com mais de 1000 km que vai de Roca Salles, no Rio Grande do Sul, até Lages, em Santa Catarina. Inicialmente, conforme conta, ele trabalhou na administração da Estação Jaboticaba, entroncamento de Bento Gonçalves, entre a linha Mafra-Lages-General Luz, e ramal de Bento Gonçalves — trecho bem mais antigo, aberto em 1919, ligando a Capital do Vinho a Carlos Barbosa, na linha Porto Alegre-Caxias do Sul. “Iniciei como soldado em 1965, quando começou a construção do Tronco Sul. Nesse tempo administrei Jaboticaba, uma das sedes do Batalhão”, conta. Ali trabalhou também com o assentamento dos trilhos.
Com o passar do tempo, contudo, ele passou a ser o responsável pela operação das máquinas, controlando as manobras dos trens que paravam no terminal. “Era uma Maria Fumaça, um trem de carga que descia do ramal de Bento para Jaboticaba. Quando chegava ao ramal, tinha que virar a chave para eles poderem entrar no desvio, e eu ia fazendo as manobras, conforme chegavam os trens. Depois de um tempo, os maquinistas começaram a me largar e diziam ‘faz isso e aquilo’ e aí fui pegando o jeito”, lembra.
Lembranças do tempo de maquinista
Após dar baixa, Bassani, eleito o melhor soldado da Companhia, foi convidado por um sargento da época para trabalhar como maquinista. “Fui para casa e fiquei umas duas semanas pensando no assunto. Então retornei e aceitei fazer o teste. Passei de primeira, e já me encarregaram de conduzir um trenzinho”, conta.
A primeira locomotiva conduzida pelo então maquinista, com pouco mais de 20 anos na época, foi a Máquina 3, um pequeno trem de até quatro vagões que carregava, sobretudo, brita — o trem hoje exposto no canteiro, frente a estação da Maria Fumaça. Na medida em que ia pegando prática, passou a pilotar trens maiores e outros tipos de carga. Transportou carvão, petróleo, trigo, madeira e até gado. “Trabalhei com vários tipos de máquinas. Na época, o Batalhão tinha umas 20 locomotivas. Tinha a 700, 10, a 14, a 7, que era a máquina de estimação, toda bonita e cromada”, enumera. Entre os trens que operou, chegou a conduzir uma máquina de 106 vagões de carga, um trem com mais de 1 km de comprimento. “De dentro da cabine, era difícil ver o final dele, era tão comprido que nunca dava para enxergar a cauda”, relembra.
Acerca das lembranças mais marcantes dos cinco anos que trabalhou operando máquinas a vapor e a diesel, enumera, com carinho, duas em especial: a primeira foi a viagem inaugural da estrada Tronco Sul, conduzindo o então ministro do Transporte, Mario Andreazza, de Vacarias até Lages para a inauguração oficial da linha; a segunda, foi sua participação de figurante em um dos filmes de Teixeirinha. “No tempo que estava construindo a estrada, o Teixeirinha fez um filme aqui. Eu fui o maquinista dele no filme, e ia conduzindo ali nas cercanias do Rio Pelotas”, conta.
As memórias dos tempos de trilho, porém, encerram-se em 1971, com a transferência do 1º Batalhão Ferroviário para Lages. Bassani então deixou a cabine do trem e passou a trabalhar de mecânico, profissão que exerce até os dias atuais.
Uma história que se apaga
Ano passado, Bassani levou a família para visitar uma das maiores obras do 1º Batalhão Ferroviário, no Rio Grande do Sul: o Viaduto 13, em Vespasiano Corrêa, o maior viaduto ferroviário da América Latina, com 143 metros de altura e 509 metros de extensão.
Embora as recordações vividas ao visitar o local sejam positivas, o sentimento foi amargo. Assim como grande parte das obras tocadas pelo 1º Batalhão Ferroviário, o viaduto está bastante degradado.
O 1º Batalhão Ferroviário e o Tronco Principal Sul
Considerado um dos grupos propulsores do desenvolvimento de Bento Gonçalves, além da criação de departamentos nas áreas de saúde, educação, desportos, entre outros, o 1º Batalhão Ferroviário, vindo de Santiago entre 1943 e 1944, foi também o responsável por parte da malha ferroviária da cidade.
O Tronco Sul, principal obra do Batalhão, com cerca de 1.500 km de ferrovias, interliga estações em 14 municípios gaúchos e catarinenses. O trecho Jaboticaba-Bento Gonçalves é uma das amostras mais significantes do esforço exercido pelos trabalhadores da época devido ao relevo acidentado da região. Em um trecho de apenas 18 km, por exemplo, mais de 14% dos trilhos passam por túneis.
“Na época tinha em média 600, 700 pessoas trabalhando, além de mais uns 600 soldados. É uma pena esse abandono, tudo foi muito trabalhoso. A gente sofre junto com os trilhos. Eles vão desaparecendo e a gente desaparece junto”