Um problema recorrente é enfrentado pelos residentes do bairro Municipal que vivem próximos ao Arroio Pedrinho. Desde as fortes chuvas de setembro, novembro e agora as de maio, as reclamações de que a água está invadindo as casas têm aumentado
Muitos foram os atingidos pelas chuvas de maio no município de Bento Gonçalves, que já contabiliza nove óbitos e mais de 100 grandes deslizamentos. No bairro Municipal, a água também deixou seu rastro de destruição, levando uma casa inteira e o restante do muro de contenção que os moradores haviam construído, uma estrutura que já tinha perdido um lado nas chuvas de novembro. Agora, a população se vê em risco iminente, sem saber o que esperar da água, que inicialmente parecia uma pequena sanga. A maioria dos moradores gostaria de estar em um novo local, seguro, mas, no momento, não há esperanças para isso.
Além da estrada ser levada, no chão, restam os escombros de casas, muros e mais a sujeira que a água trouxe consigo
“Quando levantei, meus pés estavam dentro da água”
Gesilda da Silva, de 56 anos, é aposentada por invalidez e mora há quase 30 anos no local. Sua casa de madeira fica a alguns metros do Arroio Pedrinho, que se mostra mais violento a cada ano. “Começou a chover na terça, 30 de maio, e o nível da água subiu um pouco, mas não chegou na casa, só no pátio. Então fui para a casa do meu filho. Voltei na quarta-feira e aí começou a encher de água. Estava dormindo, tomei meu remédio para dormir, e meu cunhado me acordou. Quando levantei, já pisei dentro da água”, relembra.
A água que invadiu sua residência passou por cima de tudo que estava em seu caminho, causando diversas perdas para a aposentada. “Perdi a cozinha, o balcão, meus calçados foram embora, minhas roupas ficaram todas molhadas. Meu colchão e minha cama também molharam, está tudo úmido: o chão, as paredes. E qualquer chuva faz a água vir até a casa”, declara.
O local já havia sido prejudicado em outras enchentes, como as de setembro e novembro, que arrastaram um carro e danificaram parte do muro de contenção construído pelos moradores. “Antes da água levar a estrada, ela já não estava boa, e as pessoas iam jogando terra e brita para melhorar. Sempre acontece isso, são os moradores que se reúnem para fazer as melhorias. O muro de contenção que foi embora na última chuva foi feito por dois moradores daqui”, salienta.
A mesma água que levou seus pertences encheu sua casa de barro, cobrindo o chão de madeira. “Para tirar o lodo de dentro de casa, meu cunhado, meu filho e meu genro tiveram que ajudar. Se não fosse por eles, não teria como pagar alguém para fazer. Fiquei dois dias com o barro dentro de casa. Além disso, não tinha abastecimento de água, então foi muito difícil. Sem falar que sou doente e não consigo fazer força”, conta.
Apesar de ser apegada ao lugar onde vive, Gesilda não tem como suportar mais uma enchente, afinal, isso lhe custa tanto financeiramente quanto física e mentalmente. “Fui à Secretaria de Habitação, disseram que vieram aqui, mas comigo não falaram, e que interditaram. Minha cunhada disse não ter visto ninguém na casa, no máximo vieram no bairro. Falei para a prefeitura: se não der para me dar uma casinha, pode me dar o terreno, que desmancho essa e tento aproveitar os materiais. Mas aí vemos o que fazer. Até agora, não tive respostas. Fazer o quê? Tem que ficar, mas que dá muito medo, dá. Encheu mais agora do que quando minha casa era mais baixa”, lamenta.
“Quando vi, metade da minha casa estava está debaixo d’água”
Raul De Goes, de 67 anos, é aposentado, mas para ocupar a cabeça, abriu um barzinho na parte de baixo de sua casa. Desta vez, essa parte ficou quase submersa pela água do arroio. “Para mim, ninguém falou em sair ou retirar as pessoas. Não quero sair, mas também não quero ficar em risco. Perdi muitas coisas materiais: os sofás molharam, o roupeiro molhou. Tinha barro por tudo, não foi fácil”, explica.
A madrugada de terça-feira para quarta-feira foi marcante para o comerciante, que acordou assustado ao ver que a água havia subido a níveis nunca antes vistos. “Era de madrugada ainda quando a água começou a subir. Já havia visto isso acontecer, mas não dessa forma. Estava dormindo e, quando me levantei, vi metade da casa embaixo da água. O arroio baixou rápido depois, mas enquanto chovia, se mantinha alto. Ele subiu bastante, só não invadiu a casa de novo”, diz.
O muro que corria quase toda a extensão onde estavam as casas na margem do arroio, que foi danificado em novembro e levado completamente agora, foi obra de Goes e um vizinho. “Eu e o vizinho construímos esse muro para conter a água há 10 anos. Nunca tinha caído, mas dessa vez a chuva foi demais e levou ele. Minha sorte é que minha casa é bem estruturada, porque o andar de baixo ficou quase todo submerso. Uma casa mais à frente foi levada, a correnteza estava muito forte”, comenta.
Em meio a tudo isso, o aposentado tenta manter a calma e enxergar o lado positivo da situação. “Por enquanto, não vou abrir o comércio. Está tudo muito ruim. Vou esperar para ver o que farei, porque a rua não temos mais, ela foi levada pela água. Mas dos males, o menor, porque tem muita gente que está sofrendo por causa das chuvas. Aqui foram só danos materiais, mas o medo não vai embora”, conclui.
“Pela primeira vez, a água se aproximou”
Eloir Silva é dona de casa, vizinha e irmã de Gesilda; sua casa fica próxima, mas não às margens do rio. Portanto, a água nunca havia chegado até sua casa, mas dessa vez foi diferente. “Quando o rio está baixo, não parece representar ameaça. Quando cheguei aqui, era apenas uma pequena sanga, mas nessas últimas enchentes a situação piorou. No ano passado, a água chegou nas primeiras residências, mas desta vez tirou todo mundo de casa”, conta.
A dona de casa relata que a Defesa Civil passou em algumas casas próximas e fez algumas fotos. “Na terça-feira à tarde, a Defesa Civil veio aqui e pediu para algumas pessoas saírem. Meus irmãos, que moram próximos, vieram para cá, e meu filho também, porque estava preocupado conosco. Aquela noite ninguém pregou o olho. Mas na quarta-feira, quando a enchente aconteceu de fato, a Defesa Civil não apareceu mais”, diz.
A casa de Gesilda, que fica em um local de difícil acesso, principalmente após as chuvas, não recebeu visita. “Na casa da minha irmã, ninguém foi. Eles tiraram fotos de longe, disseram que interditaram e que retirariam os móveis. No entanto, ela foi verificar e não encontrou nenhum documento relatando isso. Desde então, ninguém mais apareceu”, declara.
Mas o que realmente a surpreendeu, é que nos 29 anos que mora ali, mesmo nas chuvas fortes como as do ano passado, sua casa sempre ficou minimamente distante da água que subia, menos dessa vez. “Erguemos o que deu, pois a água já estava no portão. Ela não chegou em casa, mas ficou no nosso pátio por uns quatro dias seguidos até baixar bem. Amanhecemos acordados, foi uma noite assustadora”, ressalta.
“Estamos no fundo, fomos esquecidos por todos”
Marinês da Silva está há 12 anos no local. Atualmente, está em casa cuidando de sua filha de apenas um ano e meio, mas já enfrentou as enchentes quando seus outros filhos eram pequenos. “Quando cheguei aqui, era como um açude. Nunca tinha visto o arroio tão violento como está agora. Como pagava aluguel, aqui era a única opção de compra no bairro. Criei meus filhos aqui, colocava-os na garupa para irem secos para a escola, mas não quero que isso se repita com a caçula”, conta.
Na frente de sua casa, havia outra residência de madeira, mas agora, o que resta no pátio de Marinês são apenas pedaços do que um dia foi uma parede. “Tinha uma casa aqui. No momento, ninguém estava morando, mas o rio a levou inteirinha. Era uma casa de madeira. Nunca tinha visto algo igual. Na enchente de setembro, também foi forte, chegou a levar o carro dos vizinhos. Mas dessa vez foi muito pior; levou a casa da frente e bateu na janela da minha casa. Chegamos a ir para outra peça, porque se a água levasse, seria só a parte da frente”, lamenta.
De material, Marinês não perdeu quase nada, mas suas roupas foram todas molhadas. No entanto, algo mexeu profundamente com ela depois da última chuva. “Nós tínhamos um muro, mas a água levou. Acredito que não exista nada que o impeça quando está em fúria. Pela primeira vez, senti muito medo. Houve dias em que arrumei a cama na sala porque não aguentava ouvir o barulho do arroio. E então, comecei a ver todas as tragédias na TV, e não tem como não ficar mal”, rememora.
A dona de casa já perdeu as esperanças de viver em um local seguro, já que no momento não tem dinheiro para pagar aluguel ou se mudar. “Faz alguns anos que a prefeitura está analisando para onde iremos. Antes, havia um cadastro e parecia que nos tirariam daqui, mas agora parece que não vão mais. Pelo que entendi, querem encontrar uma solução para proteger as pessoas da água. A sensação que tenho é que estamos no fundo, esquecidos por todos. Tem gente que nem sabe que essa parte do Municipal existe”, destaca.
“A água não chegou a entrar na casa, mas perdi minhas galinhas”
Fabiana Pereira é cozinheira e mora há quatro anos no local. Ela comprou um terreno junto com seu marido e investiram na casa para o casal e suas três filhas. “Quando nos mudamos para cá, jamais imaginávamos que isso poderia acontecer. Houve uma enchente que fez o rio subir, mas não causou grandes danos. Em novembro, ele levou um pedaço do muro que tínhamos e também o carro. Tentamos arrumar a rua novamente, buscamos recursos, mas não conseguimos. Agora, veio com tudo, foi avassalador. Tenho três meninas pequenas, e me assustei bastante. Enquanto chovia, o arroio não baixava. Perdi minhas galinhas que ficavam no pátio, elas se afogaram. Quando viemos aqui embaixo, estavam todas mortas”, lamenta.
Conforme o tempo passa e a água se aproxima, Fabiana fica cada vez mais assustada. “Tenho pensado muito em ir embora, mas tudo o que investimos, o terreno que compramos, a casa que construímos, é muito triste. Tentamos buscar ajuda, mas nos pediram para esperar e sempre empurram a responsabilidade para o próximo. Esperamos que algo seja feito, porque do jeito que está, não dá”, conclui.